Jogo Perigoso é um filme que relata a história de Jessie Burlingame (Carla Gugino), que decide viajar com seu marido, Gerald Burlingame (Bruce Greenwood), durante o final de semana, em uma tentativa de apimentar o casamento, tendo relações sexuais em uma cabana afastada da cidade grande, do trabalho e dos amigos do casal.
Desde o início do thriller Jessie se mostra uma personagem submissa a seu marido, que parece sempre tentar agradá-lo, vestindo a melhor roupa, dizendo as melhores frases e se desculpando por praticamente toda decisão que toma unilateralmente, quando a mesma parece desagradar seu cônjuge.
A trama de Jogo Perigoso gira em torno do terror psicológico a que Jessie é submetida quando, após ser algemada por seu esposo à cama do casal, ocorre um acidente com Gerald que faz Jessie ter que tomar terríveis decisões para a manutenção da própria sobrevivência e, em meio ao desespero da situação, ter que lidar com seus fantasmas do passado, revivendo dores e chegando à conclusões sobre o porquê de sua vida ter tomado o rumo que tomou.
Diante das lembranças de Jessie, o espectador que luta contra o machismo é colocado à prova em inúmeras passagens e falas de Jogo Perigoso, uma vez que algumas conclusões que a própria personagem toma, acerca dos fatos que lhe vitimizaram, são extremamente machistas e invertem a culpa, atribuindo-a não aos agressores, mas sim à própria Jessie.
Uma vez percebido o desconforto causado, tornou-se imperioso valer-me do filme como ponto de partida para um debate aprofundado sobre os malefícios da sociedade patriarcal, os quais alcançam não apenas a esfera constitucional e cível, dos direitos das mulheres e filhos, mas também a esfera criminal.
Inicialmente, é necessário conceituar o patriarcado: trata-se de um modelo social em que homens detêm o poder e a predominância em funções de liderança na esfera pública e privada, recaindo, portanto, sobre eles, o dever de gerir a sociedade, suas famílias e suas propriedades.
Por força do patriarcado, criam-se normas constitucionais voltadas exclusivamente aos homens que, em razão de tal sistema, são os únicos seres humanos considerados “sujeitos de direito” e, portanto, merecedores da intervenção estatal para proteção de seus próprios direitos.
Além da esfera constitucional, onde se reconhecem como detentores de direitos apenas os homens, o patriarcado também incide diretamente na legislação cível, uma vez que, se a sociedade é composta por homens que fazem regras para outros homens, obviamente, a intenção dos homens será sempre a de manutenção do status quo, visando o engessamento da sociedade, para que mulheres e crianças sempre sejam submissas à vontade dos homens.
Daí porque, na sociedade patriarcal, subsiste a figura do pátrio poder, que consiste no poder dos ascendentes sobre seus filhos, mas colocando o homem em uma situação de prioridade em relação à mulher, exatamente como dispunha o Código Civil de 1916, em seu art. 380: “durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido, como chefe da família, e, na falta ou impedimento seu, a mulher.”.
Não se reconhecendo a mulher como sujeito de direitos, a sociedade patriarcal, ainda, determina que o divórcio é um direito garantido somente ao homem – somente o marido pode requerê-lo -; e não se assegura qualquer proteção estatal à mulher, que é tratada como relativamente incapaz, quando casada, e que é submetida a uma regra legal que dispõe expressamente que ela poderá casar, ainda que não tenha atingido idade núbil, para a proteção de seu agressor, a fim de evitar que contra o homem corra um processo.
É por consequência do patriarcado e da ausência do reconhecimento da mulher como sujeito de direitos que, diferentemente do homem, que quando casa ganha o título de “marido”, a mulher é chamada somente de “mulher”, casada ou solteira, mudando apenas seu titular: antes do casamento ela era uma mulher da família X (portanto, propriedade do chefe da família – seu pai), mas após o casamento ela será a mulher de Fulano (propriedade de seu marido).
Igualmente, o patriarcado é aquele que determina que o estupro cometido contra “virgens” ou “mulheres defloradas” teriam penas distintas, porquanto as virgens deveriam ser mais bem quistas, mas ainda prevê que o estupro de virgens, caso sobrevenha o casamento do algoz com a vítima, não será punido (Código Penal do Império, art. 219) e o estupro de prostitutas terá pena branda, caso seja punido.
O patriarcado é o responsável pela incoerência de prever que a morte encefálica é fator suficiente para atestar a morte de alguém, mas a completa ausência de funcionamento cerebral não pode ser utilizada como argumento para possibilitar o aborto, antes mesmo que o cérebro do feto tenha se formado – afinal, se não há vida sem cérebro, não haveria que se falar em aborto, certo?
É característica do patriarcado essa intenção de sempre deslegitimar as lutas das mulheres, menosprezando suas pautas, visando deixá-las em posição de inferioridade em relação aos homens, para que, assim, nunca reivindiquem seus direitos, e esse desamparo se dá desde a proibição do voto, de exercer trabalhos fora de casa, do pedido de divórcio pela mulher, de considerar a esposa relativamente incapaz, até se obstar que a mulher escolha o que irá fazer ou não com o próprio corpo, ao impedi-la da opção abortar.
Neste sentido, em uma sociedade que se conformou patriarcal e, por anos, desenvolveu-se sobre bases patriarcais, por mais que haja a superveniência de uma Constituição Cidadã, que preveja a igualdade entre homens e mulheres, independentemente de qualquer fator, as raízes do patriarcado estarão sempre ali presentes.
Na sociedade brasileira, por exemplo, a Constituição que previu a igualdade entre homens e mulheres tem apenas 31 anos, mas, mesmo após sua promulgação, os legisladores – majoritariamente homens – demoraram para adequar as leis permitindo, por exemplo, o divórcio requerido pela esposa; a opção da mulher de mudar ou não seu nome ao casar-se; ou prevendo ambos, pai e mãe, como responsáveis pelo “poder familiar”, afastando-se a nomenclatura “pátrio poder”.
Nessa sociedade de costumes e morais patriarcais o estupro marital não era considerado crime até pouquíssimo tempo atrás, posto que se dizia que o homem tinha o direito de “exigir” que a mulher cumprisse com suas “obrigações matrimoniais”, dentre as quais estaria incluída a obrigação de satisfazer sexualmente seu marido.
Igualmente, nosso país tornou-se terreno fértil para a criação da cultura do estupro, que vê o crime de estupro não como o crime repulsivo que realmente é, mas sim como uma conduta que pode e deve ser perdoada, afinal, é “da natureza do homem” agir com tamanha violência contra mulheres.
Tal cultura do estupro inverte a culpa do crime de estupro, fazendo-a recair sobre a vítima, uma vez em que a sociedade, o agressor, a própria vítima – e até mesmo indivíduos eleitos Presidentes da República – são ensinados que uma mulher que não se dê o respeito “merece” ser estuprada, por causa do jeito que se veste, que se arruma, que anda, lugares que frequenta e amigos que mantém.
Essa cultura do estupro faz com que milhares de vítimas de estupro permaneçam na cifra oculta, de modo que sequer é possível dimensionar quantas vítimas, de fato, existem por ano no Brasil, já que essas vítimas são ensinadas a não procurar socorro, porque elas que causaram o crime, porque “não vai dar em nada”, porque “vai destruir sua família se denunciar”, dentre tantas outras motivações absurdas e machistas.
Exatamente neste ponto toca Jogo Perigoso, que também se passa na realidade de uma sociedade fundada no patriarcado – sociedade norte-americana – a qual, por mais que esteja em processo de desenvolvimento, assim como o Brasil, e reconhecendo, vagarosamente, os direitos das mulheres e a igualdade entre homens e mulheres, ainda é contaminada pelas raízes profundas do sistema patriarcal.
E, por isso, é importante o debate sobre as consequências do patriarcado na sociedade, para evidenciar que são inúmeros os casos de abusos, assédios e estupros que compõem a cifra oculta, cuja dimensão jamais teremos conhecimento, e, por conseguinte, inúmeros são os homens que saem impunes após praticarem tais crime. Ou seja: o patriarcado viola direitos, mata, estupra e garante a impunidade dos agentes criminosos.
(Gerald’s Game, EUA, 2017, 103 min.)
Terror | Direção: Mike Flanagan | Roteiro: Mike Flanagan, Jeff Howard | Elenco: Carla Gugino, Bruce Greenwood, Chiara Aurelia, Carel Struycken, Henry Thomas, Kate Siegel, Adalyn Jones, Bryce Harper
Ver “Jogo Perigoso” na Netflix
Jogo Perigoso
Análise pobre e que só repete os chavões da época. Uso de conceitos e palavras vazias que passam a aparência de que se está expondo algo da sociedade e desafiando padrões. Clichês, lugares comuns e conceitos sociais pobres. Baixa qualidade, mas é só o que essa geração sabe fazer com a sua pseudociência de acentuação de conflitos.