- Gênero: Drama
- Direção: Baz Luhrmann
- Roteiro: Baz Luhrmann, Sam Bromell, Craig Pearce, Jeremy Doner
- Elenco: Austin Butler, Tom Hanks, Olivia DeJonge, Richard Roxburgh, Luke Bracey, Dacre Montgomery, Kelvin Harrison Jr., Leon Ford, Shonka Dukureh, Yola, Adam Dunn, David Wenham, Kodi Smit-McPhee
- Duração: 159 minutos
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Como faz diferença um autor em uma produção, não é mesmo… as cinebiografias “produzidas para concorrer a prêmios”, uma máquina de render Oscars, eventualmente dinheiro e em menor quantidade elogios, geralmente são defendidas por profissionais medíocres da indústria, paus mandados que não se diferenciam entre si. A diferença entre Taylor Hackford, Rupert Goold, Phyllida Lloyd, Dexter Fletcher, e tantos outros é inexistente. Todos trabalham como responsáveis por gritar “ação!” em um set, pouco além disso, e empregar qualquer tipo de autoralidade nesse mercado é atrasar um produto que foi concebido para ser colocado em uma prateleira, consumido, premiado e esquecido; no ano seguinte, tem mais. Até a chegada de um Baz Luhrmann, com seu Elvis.
Em pouquíssimos minutos, se faz presente o homem por trás de Moulin Rouge e Romeu + Julieta, esse segundo ainda mais evidente em cena. A apresentação de Las Vegas aqui remete diretamente ao que é feito com Verona na adaptação do clássico de Shakespeare pelo australiano. Sua extravagância barroca é um cartão de visitas em cena no olhar que o diretor lança sobre o Rei do Rock, que absorve o histrionismo visual de Luhrmann de forma quase integral. Parecem feitos um para o outro, onde criador e criatura se confundem, em algum lugar observacional. Ao mesmo tempo em que a assinatura está impressa no DNA da obra, temos aqui uma versão um pouco menos exótica do que o habitual, como se sua confecção pensasse em todo o público, e não apenas no aficcionado por cinema e pelo diretor, e sim em uma massa mais ampla.
Esse é, sem dúvida, o projeto do diretor com menor personalidade. Digo isso não por não perceber seu toque no material como um todo, sem sombra de dúvida está lá, de maneira intrínseca. Mas o próprio subgênero investido permite com que essa obra pudesse sim ser dirigida por qualquer outro tipo, no que diminuiria seus méritos, sem dúvida. A presença de Luhrmann na direção arroja e consegue ao filme soluções criativas para um lugar que, em retrospecto, é travado ao mostrar sua (falta de) unidade. Elvis não sofre dessa questão, trata-se de uma forma cheia de vibração e energia para um lugar que geralmente não arrebata, seja por uma fôrma desgastada, seja por uma direção anódina, seja por ambos. Nesse sentido, Elvis Presley teve a sorte que não tiveram Freddie Mercury, Judy Garland, Ray Charles, Stephen Hawking, e tantos outros.
Não dá pra dizer que essas biografias protocolares deixem de ter momentos icônicos, muitas delas inclusive giram em torno dessas cenas – o que seria de Bohemian Rhapsody sem o LiveAid, por exemplo? Só que o talento de Luhrmann realça esses pontos de interesse, que se livram da característica de obedecer a uma iconografia de maneira padrão. Elvis se rebelando contra a decisão do governo, remexendo seu dedo mindinho em uma apresentação, a gravação lendária do especial de Natal, a discussão mais explosiva entre o ídolo e seu empresário, tudo isso é filmado com a marca da personalidade de um artista irreverente com os dogmas que precisa acessar, ao mesmo tempo em que cerca seu trabalho de rigor. Ao lado de Mandy Walker (de Mulan), eles concebem luzes especiais a momentos que trafegam entre a melancolia da consciência de nunca conseguir aplacar na totalidade o amor que recebe do público, com a leveza arrebatadora de momentos crepusculares. A descoberta da pélvis no palco, por exemplo, e a reação em cadeia que se forma entre mulheres que se tornariam fãs, ao ver nascer o ícone; Walker consegue trafegar com desenvoltura entre esses dois traços fílmicos.
O filme se apresenta com a pompa e a montagem picotada que caracterizam esse cinema frenético do diretor, com uma agilidade por frame de intensidade inigualável. Não se trata de uma escolha aleatória, sem qualquer propósito; a obra de Luhrmann prima por esse lugar do inquieto, do desassossego imagético, que se preza à narrativa em seu lugar mais adequado para tal. Ele consegue antever o ritmo superlativo de seus personagens, de suas premissas para criar uma moldura reconhecível à sua costura, em cada um de seus títeres. Satine, o jovem casal trágico de Verona, os tipos criados por F. Scott Fitzgerald, ou o maior astro da música americana da História – todos são unidos pela ânsia de viver, de amar e conjugar esses verbos de maneira feérica. A tradução do diretor de cada um desses universos em alto relevo, revela não apenas as peculiaridades de seu diretor, como também essa união inusitada entre pessoas, lugares, épocas e linguagens primais bem isentas – que ele conecta com integração absoluta.
Infelizmente Luhrmann compreende (qual a motivação dessa compreensão, se ela foi ou não gestada em motivos escusos, não saberemos) que seu filme não é só seu, e faz um filme, a partir de determinado momento, que a Warner queria ver, ou que o público queria ver, ou que o Oscar queria ver. Todas essas opções seriam/são ruins, porque Elvis se abranda e toma rumos menos estroboscópicos, quando é exatamente isso que queremos ver em um filme do diretor. Ainda que permaneça em uma zona próxima ao seu habitat natural, claramente há um freio puxado pelo filme, que se dedica ao academicismo a partir de determinado ponto. Também não ajuda que, na ânsia de criar seu olhar metafórico para o filme ao explorar a relação do astro com a fama e a idolatria, o roteiro escrito a oito mãos não se apodere de nenhum dado específico a respeito do biografado, parecendo tudo uma colcha de retalhos grande demais e sem detalhamento.
No centro das atenções, duas atuações “grandes”, por assim dizer. O novato Austin Butler faz o que é esperado: passou meses trancado vendo 470 mil horas de vídeo e saiu de um quartinho imaginário possuído por seu espírito, física e gestualmente. Seus melhores momentos (os únicos que impressionam de verdade?) são as recriações de palco, onde ficamos hipnotizados pelo lugar mimético que ele alcança – embora esse tipo de trabalho performático me interesse cada vez menos. Tom Hanks também faz o esperado, ou seja, um vilão cartunesco cheio de maquiagem e vozinha irritante providencial para que o seu coronel Parker jamais seja identificado em suas origens; exatamente o que um filme de Baz Luhrmann precisa, enquanto interpretação. Exagerada, overacting, muitos tons acima, e que cabe com exatidão no projeto.
Entre idas e vindas, e em um espaço cada vez mais repleto de projetos com as mesmas intenções (dinheiro + prêmios + se possível elogios críticos, até porque isso ajuda a chegar ao segundo dado), Elvis não está exatamente dentro da caixinha habitual, vide King Richard e Respect ano passado, porém, seu diretor nos acostumou com uma energia autoral onde não cabem concessões. Seu entusiasmo pelo seu trabalho, a forma como se entrega em espetáculos pirotécnicos o quase colocam no papel de mestre titereiro, assim como o senhor Parker. Cabe ao espectador não esperar quinze anos para fazer o que Elvis fez e apreender de seu filme apenas o que é positivo e qualitativo, continuar rezando por Catherine Martin e seu trabalho esplendoroso de arte e figurino, e compreender que tudo na vida tem seu preço. Elvistt3704428 paga o dele, a ousadia de acender velas para inúmeros santos.
Um grande momento
“Suspicious Mind”