Crítica | Streaming e VoD

Mulan

(Mulan, EUA, CAN, HKG, 2020)
Nota  
  • Gênero: Ação
  • Direção: Niki Caro
  • Roteiro: Rick Jaffa, Amanda Silver, Elizabeth Martin, Lauren Hynek
  • Elenco: Yifei Liu, Donnie Yen, Li Gong, Jet Li, Jason Scott Lee, Yoson An, Tzi Ma, Rosalind Chao, Pei-Pei Cheng, Xana Tang, Ron Yuan, Jun Yu, Chen Tang, Doua Moua, Jimmy Wong
  • Duração: 115 minutos

Chamado de “uma versão fantástica da China Imperial” com épicas lutas de espada e artes marciais, o gênero wuxia é popular na China há um longo período de tempo. Não tardou muito para o mesmo migrar da literatura para o cinema, onde o universo povoado por guerreiros, andarilhos, rebeldes, monges, princesas e ladrões comumente mortais, corajosos e leais, que vivem sob um código moral de honra, logo também povoasse a imaginação do público ocidental. O Tigre e o Dragão é talvez o exemplo mais bem sucedido, sendo a produção dirigida por Ang Lee vencedora de um par de Oscars. Mas faltava que uma certa lenda, adaptada pela Disney nos anos 1990, ganhasse sua versão live action propriamente afinada com os preceitos da cultura asiática. Coragem, lealdade, verdade e dedicação à família são a base da história de Hua Mulan, a soldado que salvou seu imperador ao derrotar a ameaça externa. Liu Yifei é Mulan na audaciosa versão com orçamento astronômico (US$ 200 milhões) que o estúdio do Mickey resolveu, nessa era pandêmica, lançar direto para compra no streaming Disney +.

Os brasileiros só terão a oportunidade de conferir a produção, roteirizada a quatro experientes mãos (de Amanda Silver, Elisabeth Martin, Lauren Hynek e Rick Jaffa) e dirigida pela neozelandesa Niki Caro, em 17 de novembro – quando a plataforma estreia aqui. Com a exceção de que Mulan, diferente das adaptações que a antecedem – Cinderela, A Bela e a Fera, Aladdin e O Rei Leão – pouco ou nada tem a ver com sua contraparte animada lançada em 1998, fabulosa, mas extremamente caricata. E talvez aí resida o fator que torna esse filme mais interessante: afora ser um caça-níqueis descarado, trata com algum respeito a cultura chinesa e tenta traduzir a mágica que compõe muito da filosofia do povo oriental.

Mulan (2020)

Composta no século VI durante a dinastia Tang, a “Balada de Mulan” versa sobre a menina que, para livrar o pai da morte certa – ele já havia lutado em guerras heroicamente, mas estava idoso – se passa por homem e ingressa no exército do imperador. Ela salva a China e se torna lenda. Mas o grande fascínio é que, independentemente de Hua Mulan ter sido alguém de carne e osso, ela foi uma filha leal e uma mulher corajosa, que desafiou as convenções por amor. Qual a melhor maneira de expor essa saga para um público global do que, ao invés de adaptar a versão animada, se inspirar diretamente na lenda e unir conceitos do wuxia ao taoísmo?

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Mesmo não sendo chinesa, Niki Caro (que realizou o comovente Encantadora de Baleias) tem inteligência para, utilizando códigos sutis ir constituindo a saga da heroína sem apelar para armadilhas emocionais ou apropriação cultural.

Dizem que conhecemos uma lebre segurando-a pelas orelhas
Há sinais para distinguirmos
Suspenso no ar, o macho chutará e se debaterá, enquanto que as fêmeas ficarão paradas, com os olhos a lacrimejar
Mas se ambos estão no chão a pular em liberdade singela, quem será tão sábio para dizer se a lebre é ele ou ela?

Mulan (2020)

Este trecho, que explicita o valor da mulher guerreira na balada de Mulan, se torna imagético no filme quando vemos a menina cavalgando ao lado das lebres. Na sequência, a mãe chama a atenção do pai por ser indulgente e não preparar Mulan para ser uma dama e casar. Não há mais nada a dizer sobre o porquê da menina destemida se tornar um símbolo feminista. E no não dito, mas visto, exercitado como linguagem ou escolhas artísticas – o figurino e a maquiagem que não disfarçam Mulan como menino mas a deixa andrógina e perfeitamente misturada aos companheiros soldados – o filme vai ganhando aderência perante os olhares que o assistem. A exemplo de Pantera Negra, com Rachel Morrison, um fator que chamou atenção em se tratando de um blockbuster dessa magnitude é a fotografia assinada por uma mulher – no caso, pela australiana Mandy Walker, que nos brinda com uma linguagem visual repleta de encantamento e destreza.

A magia habita cada frame impecável de Mulan, com efeitos visuais muito bem feitos, figurinos sublimes e uma trilha sonora que honra os timbres e tonalidades orientais, homenageando também a animação musical com pedaços incidentais de canções, além de uma nova versão de Cristina Aguilera para sua “Reflexions” e uma versão extra cantada em mandarim por Liu Yifei – a atriz e cantora protagonista também não fugiu das controvérsias, com seu posicionamento político provocando tentativas sucessivas de boicote ao filme, especialmente por aqueles naturais de Hong Kong.

Mulan (2020)

Mesmo habitando arquétipos, como nos melhores wuxias, atores como Tzi Ma e Gong Li brilham em suas atuações, especialmente contracenando com Liu Yifei. Só faltaria em Mulan uma participação de Jackie Chan para fechar a tríade dos monstros sagrados do cinema oriental e das artes marciais, mas Jet Li e Donnie Yen dão uma amostra luxuosa de kung fu (ou wushu, para os chineses), os atores são ambos mestres de taiji zen, uma mescla do tai chi chuan com meditação, devendo ter servido como consultores e instrutores no set para os dublês e a própria Liu Yifei nas cenas em que ela demonstra seu chi.

A união harmoniosa entre artes marciais e meditação é o que torna as sequências de ação realmente envolventes, sendo possível detectar movimentos do tai chi – arte marcial interna, espécie de cura que remete tanto ao taoísmo quanto à alquimia na China. Porém, este surgiria quase dez séculos depois da Dinastia Tang, no século XVII, mas em determinado momento do treinamento militar com Shufa (caligrafia) se lê “qigong” que é justamente um trabalho de cultivo de energia muito utilizado naquela época. Ademais de todas as informações contidas aqui sobre a filosofia oriental, Mulan satisfatoriamente vai além da superfície, trazendo, em um blockbuster, uma visão realmente transcendente e respeitosa, com o adendo de que, para ser perfeita, só faltava ser falada em Mandarim.

Mulan (2020)

Repleta também de simbolismo – especialmente para quem era criança ou adolescente na década de 90 – é a aparição de Ming Na Wen, introduzindo Mulan à corte imperial. A atriz macaísta deu voz a Mulan nas duas animações da Disney. Também há alguma nostalgia na aparição de Jason Scott Lee como o vilão, que viveu o mito Bruce Lee no telefilme Dragão, programa frequente da Sessão da Tarde.

Mas, sem espaço para mais saudosismos, essa versão não traz o dragão Wushu para servir de guardião da moral ou alívio cômico, adotando a mítica fênix, ave protetora da família Hua como o signo da mudança interior de Mulan. A heroína, que não precisa de um bom casamento para ser honrada – para desespero da casamenteira -, coloca em prática a lei do retorno, é exaltada em todos os cantos do império e se despede partindo para ter uma existência espontânea e serena, vivendo em harmonia consigo e com o Tao.

Um grande momento
O feitiço de proteção.

Ver “Mulan” no Disney+

Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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