Crítica | Catálogo

Entre Mulheres

Falar e ouvir

(Women Talking, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Sarah Polley
  • Roteiro: Sarah Polley
  • Elenco: Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Judith Ivey, Ben Whishaw, Frances McDormand, Sheila McCarthy, Michelle McLeod, Kate Hallett, Liv McNeil, August Winter, Kira Guloien, Shayla Brown, Vivien Endicott-Douglas
  • Duração: 104 minutos

As imagens são de uma mulher violentada e quem nos conta a história é uma menina. No meio da noite todas as mulheres daquele lugar já passaram pela mesma violência, inclusive ela. Estamos em uma zona rural, e parece que em algum lugar do passado ou seria uma comunidade menonita? Em algum momento, uma canção dos The Monkeys, “Daydream Believer”, divide o espaço com um alto falante que anuncia o censo de 2010. Estamos falando de ontem. E imediatamente vem à cabeça a pavorosa história de Manitoba, na Bolívia, onde mais de 150 mulheres eram dopadas e estupradas repetidamente durante a noite.

E sim, Entre Mulheres, adaptação do livro homônimo de Mirian Toews pela diretora do longa Sarah Polley (Entre o Amor e a Paixão), é inspirado nos eventos reais ocorridos na pequena comunidade boliviana. Porém, não é um filme que quer apenas retratar os acontecimentos, discute-os e, de certa forma, enfrenta-os, ficcionalizando parte da história. Seu ponto de partida é a votação que se dá depois que alguns agressores são pegos e as mulheres obrigadas a perdoá-los, pois, caso não o fizessem, não seriam dignas de entrar no reino dos céus. Elas têm três opções: fazer nada, ficar e lutar ou fugir.

Women Talking
Michael Gibson/Orion Releasing

A representação no filme é específica, isso se vê na ambientação, nas vestimenta e no modo de falar; e aqueles acontecimentos remetem a um fato real, mas o perturbador no longa é sua persistente aparência metafórica, porque basta ser mulher nesse mundo para ter noção das violências possíveis, em comunidades isoladas ou não, e os traumas, silenciamento e tentativas de invalidação e enlouquecimento são muito reais, cotidianos, estão aqui e em todo lugar.

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Isso aconteceu por anos. A todas nós. Parecia que não tinha peso. Parecia flutuar sobre o que costumava ser real. Parecia um banimento, como se nós não estivéssemos mais convidadas a ser parte da realidade. Eu costumava pensar em quem eu seria se isso não tivesse acontecido comigo. Eu costumava sentir saudade da pessoa que eu poderia ter sido.

Women Talking
Michael Gibson/Orion Releasing

Entre Mulheres assume a forma de um longo debate sobre a decisão a ser tomada por aquelas mulheres que sofrem a violêcia no seu cotidiano. Naquela realidade particular, que representa algo que trancende as barreiras do tempo e espaço, une personalidades distintas, de igualmente distintas gerações, cada uma com sua especificidade e contextos. São verdades e experiências de vida que se confrontam em um debate sobre que caminho tomar.

Há no filme alguém que destoa daquela realidade, August, o único homem entre aquelas que se reúnem para discutir a situação, chamado como secretário para registrar aquilo que se fala pela falta de letramento das mulheres do local, porque a ignorância delas é desejada. Professor, filho de uma mulher que passou pela mesma violência no passado mas não está mais entre elas, ele conhece a vida fora da comunidade e está disposto a ajudar.

Women Talking
Michael Gibson/Orion Releasing

A maior parte do longa se passa no celeiro onde se dá a votação, local onde as mulheres se sentem seguras para os encontros e os debates, com Polley escapando do local para mostrar as parábolas de uma das anciãs com suas Ruth em Cherryl, aquelas que serão algumas das que levarão à liberdade, ou para expor a realidade do patriarcado, em espaços dominados por homens, como a igreja e a escola, ou a vaziez dos mesmos quando da projeção de um futuro calcado na igualdade.

Nós sabemos que as condições são criadas por homens e que as condições para os ataques são possíveis pelas circunstâncias da colônia. E essas circunstâncias foram criadas e ordenadas pelos homens.

Michael Gibson/Orion Releasing

O que se vê traz a realidade de existências desprezadas, silenciadas por décadas. A elas é dado o direito de contar suas histórias, o que por vezes irrompe em riso ou em choro. São momentos íntimos que levam à identificação e ao afeto. Há o tempo da palavra e há o tempo do silêncio, há também a representação, aquilo que se dá fora do ambiente seguro, seja para mostrar o trauma do passado ou a insegurança do futuro. Mas há também a esperança.

O texto de Entre Mulheres traz discussão profundas sobre patriarcado, sobrevivência, sororidade, masculinidade tóxica, liberdade e fé. É um filme que perturba, choca, machuca e tira do lugar por, ao contar sua história, falar de tantas outras e trazer à tela todas. Trata de passado, presente e aquilo que pode acontecer. De se posicionar e, o mais importante, de falar sobre isso.

Um grande momento
O estouro de Mariche

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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