- Gênero: Drama
- Direção: Michael Mann
- Roteiro: Troy Kennedy Martin
- Elenco: Adam Driver, Penélope Cruz, Shailene Woodley, Gabriel Leone, Patrick Dempsey, Sarah Gadon, Derek Hill, Giuseppe Bonifati, Giuseppe Festinese
- Duração: 125 minutos
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Ferrari nos prova algo muito sério, e real: não é o ato de filmar biografias que está errado, e sim a contratação dos diretores para as mesmas, e suas concepções enquanto material cinematográfico. Um projeto de paixão como esse filme, com a condução de um Cineasta, mostra que o erro para construir bons filmes não está nos projetos, mas na absoluta falta de ambição para produzi-los. Pega-se um burocrata sem qualquer empenho, que filme página a página das monstruosidades que Anthony McCarten escreva, e basta para cumprir uma tabela programada para apertar os botões de sempre. Em ano varrido pelo Oppenheimer de Christopher Nolan, apenas a grandeza arrecadada nas bilheterias justifica um bom filme perder troféus para uma bela demonstração de domínio cinematográfico construído na sutileza. E sabem o que é pior? Não parece existir esforço no que é feito.
Mas isso é apenas uma aparência, porque se tem algo que Michael Mann não abre, é de uma rigorosa e muito simbólica ‘mise-en-scene’, que evidencia apenas o olhar, coloca a ênfase nesse sentido e acredita preferencialmente nele para contar sua história. O roteiro de Troy Kennedy Martin não é desprezível, longe disso, mas o diretor de O Informante e Miami Vice não está necessariamente interessado em contar uma história oral, apesar de tratar-se de olhar biográfico, em tese. A base em questão é a saga do empresário Enzo Ferrari em sua maturidade, mas o que ele destrincha para a tela desse retrato pode ser lido através da carpintaria imagética. Dessa forma, são os planos que Mann pinta, que acabam por validar algo tão especial quanto o que acontece em Ferrari.
Através do que radiografa sua câmera, transformando o plano em narrativa, Mann aos poucos vai se apropriando de um campo historiográfico que, geralmente, privilegia o que está sendo dito em contraponto ao que está sendo mostrado. Como habitual, o cineasta alcança outras maneiras de traduzir sua cinematografia, dando valor dobrado ao que é imagem, e ressignifica sua já tradicional ligação com a banda sonora. Todo o conteúdo presente no que estamos acostumados a ter com o gênero que o cineasta aqui se aventura, um artista tradicional devolveria no que Hollywood tradicionalmente entende como o molde preciso para tal. O diretor de Inimigos Públicos (filme injustamente esquecido e desprezado) mais uma vez adentra a textura do plano, e traduz em Ferrari o que já acostumamos a ver em sua filmografia, com uma atitude de respeitar o poder da imagem que outros cineastas não aderem.
Colar a câmera no rosto de Adam Driver a ponto de deformá-lo esteticamente com a intenção de comentar a estatura moral de seu protagonista é uma escolha consciente que revela seu carinho com o poder que um intérprete concebe o trabalho alheio. Sem interferir diretamente na performance de cada ator, Mann reverencia as potencialidades de cada um ao permitir que seus olhos comuniquem, que seus corpos traduzam, que seus gestos envolvam de força o material, unitário e coletivo. Essa prerrogativa está exposta em outras decisões criativas, não apenas as que tangenciam a atuação, mas a que possam contar uma história por ângulos outros que se cercam de um olhar abrangente da autoralidade. Em Ferrari, mesmo o relevo de cada personagem é uma criação conjunta de Martin e Mann, o que ao longo da projeção se revela em algo simbiótico enquanto projeto.
Nessa proposta, não é difícil identificar Penélope Cruz como uma força da natureza em cena, com sua leitura do melodrama mais pungente sem pensar nas consequências, ao mesmo tempo em que trata-se de uma interpretação acertadamente contida. Só que ao contrário de visões mais óbvias, a consonância de criação está no trabalho dos atores com o que essa autoria esteja palpável no que vemos. Não é simplesmente um trabalho de direção de elenco como poderia ser imaginado, mas na confiança de que a liberdade dada para grandes atores gera uma composição que pode ser capturada pela lente, o que cria uma cumplicidade entre essas áreas. Então está no que Cruz apresenta, mas também está no modo Mann como equaliza esses momentos com sua câmera, em como ele a conduz e posiciona, em que cores isso é traduzido, e em como ele eleva seu material como um todo, pela forma como tudo ali é conectado.
O resultado é um filme que não está em consonância com o que é produzido no cinema, e que independe de seus deméritos, porque Mann é particular tanto no que são as ausências quanto em seus acertos. Essa curvatura para perceber que o relevo obtido com o desenho do roteiro, livre da padronagem “oficial” da cinebiografia, permite organizar um processo sensorial dos seus elementos, tornando-se assim um desses campos de recorte temporal que servem para elucidar uma persona envolvida. Se Ferrari não se sagra bem sucedido na totalidade, é pelo excesso de controle em cima do Homem, que empalidece a História. Esse também é o motivo pelo qual apenas Laura consegue emplacar uma segunda força no universo, com os outros elementos gravitando sem o mesmo impacto.
Ainda assim, toda a experimentação estética envolvendo a velocidade em cena, remonta em Ferrari a constituição da filmografia de Mann, que atestam no cineasta a mesma paixão pela velocidade que o protagonista de seu filme. Esse é um dos motivos pelo qual a crueza das cenas – e o apreço da imagem pelo que é impactante – não se perde dentro das convenções orquestradas pelo gênero. Um filme apaixonado pelo que está tratando, tanto quanto por si mesmo; não podemos negar o quanto naturalmente a produção sente seus valores com orgulho de si. E não há qualquer problema em construir um filete de arrogância quando o retorno absorve tão bem seus predicados, e os torna parte integrante de uma narrativa celebratória de um tempo de excessos.
Um grande momento
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