Crítica | Festival

Freda

Salvas pelo afeto

(Freda, HTI, FRA, BEN, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Gessica Généus
  • Roteiro: Gessica Geneus
  • Elenco: Néhémie Bastien, Djanaïna François, Fabiola Rémy, Jean Jean
  • Duração: 93 minutos

A penúltima cena de ‘Freda’, uma das descobertas do Olhar de Cinema 2022, desemboca na mensagem que durante o longa ficou entrecoberta por outros discursos e motivações aparentes. Três de suas protagonistas, justamente as mulheres mais jovens em cena, que são devidamente escorraçadas dentro e fora do plano durante a produção, estão finalmente em comunhão. Gessica Généus, sua diretora em estreia já devidamente premiada aqui (inclusive num tal de Festival de Cannes), exacerba suas intenções, com uma linguagem acessível, para mensurar uma realidade integrada de identificação. A comunhão em cena, embora pareça desmedida em caso mais extremo, tem nome, ele está na boca de todos e aqui estabelece um patamar raro de alcançar: sororidade importa, e será ela junto à empatia, a definir o futuro de mulheres ainda mais marginalizadas que o normal. 

A atriz e realizadora haitiana nos situa da característica mais evidente de sua produção para dar voz a uma vivência infelizmente comum a muitas mulheres, e quanto mais periférica, mais atingida. O machismo aqui, a violência, a cultura do patriarcado enquanto instituição, a difusão de valores políticos de dominação a seu povo, são dados que Généus elenca aqui com propriedade e uma compreensão que não será lida com a mesma força a todos os espectadores. Existe também, em ‘Freda’, suas mulheres filhas desse mesmo machismo e dessa mesma opressão, que refletem o que foi passado para elas, de geração a geração. “Não é possível receber de volta amor, de quem nunca recebeu inicialmente”, é uma frase dita na reta final para nortear uma relação destrutiva, e que não está exatamente à mercê do entendimento; é preciso uma dose extra de sabedoria. 

© Sanosi Productions

Não se trata exatamente de um material disposto à imagem, ou a criação do plano, a priori. Mas esse mesmo grupo de imagens, quando conectado ao argumento concebido por Généus, aí sim revisita narrativas urgentes que nunca perecem, infelizmente. É um olhar muito experimentado para as condições que a acompanham por toda a vida, em todas as tessituras sociais. A partir dessa interconectividade, ‘Freda’ então reafirma seu espaço de discurso. Não temos diáspora aqui, mas uma internalização do ato violento para com os seus, desde o Estado até a família – e o que nos resta a fazer se não partir? O irmão de Freda escolhe não estar mais sob esse jugo, mas o filme não o verbaliza, deixando suas mulheres igualmente formatarem seu material de análise. 

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A partir de, não apenas Freda, mas também Esther e Geraldine, o filme evoca uma nova configuração de poderes dentro do feminino. É preciso quebrar os padrões estabelecidos no passado para com as políticas históricas de tratamento à mulher, e será a juventude a perceber que os malefícios da repressão sexual precisam ser vencidos inclusive dentro do feminino. Três mulheres jovens, dotadas de um empoderamento natural, precisam decidir o que é melhor para suas vidas, ainda que essa tal escolha seja permanecer para construir o único futuro possível. Sem questões pré-estabelecidas de inclusão compulsória, o que vemos entre essas mulheres é o nascimento (até um literal) de uma força que determine uma nova ideia de relações de afeto, e que nela encontrarão armas de outras ordens. 

© Sanosi Productions

Assim como em ‘A Ferrugem’, a grande responsabilidade em ficar de onde todos deveriam fugir é a certeza da reconstrução, e não apenas do seu entorno. O que Freda consegue compreender ao longa da duração do filme é uma reafirmação da família que a faça domar sua raiva particular em relação ao que o mundo lhe deveria. Também essas costuras familiares viriam a moldar sua nova expectativa para o futuro, cuja política tem que ser também interna; não temos como motivar o mundo se não conseguimos varrer a própria casa. Através do beijo em uma barriga e dos conselhos para uma nova mulher que ainda irá chegar, nossa protagonista parece reunir as armas necessárias para os novos rounds que já se avizinham. Pena que Généus não adentrou ainda mais por Esther e Geraldine, duas mulheres tão fascinantes quanto, incluindo ler a liberdade sexual da primeira como algo motivador de um fascínio e de uma segurança que poucas já possuem. 

O incômodo quase único de ‘Freda’ é o olhar paternalista que é lançado para uma personagem amplamente negativa como a mãe da personagem-título. Em sua imensa maioria das cenas, a personagem está diminuindo alguém, destilando fel, amargura em punho, ciente de suas ações negativas e ainda assim ampliando seu poder destrutivo. O filme não apenas a trata como uma vítima – porque sim, ela o é – mas a ideia de transformá-la em uma espécie de mártir de um tempo, me soa contraditório com os ventos de mudança que o filme apregoa. O passado precisa ser compreendido, mas não podemos diminuir a força da sua destruição, principalmente quando ela é deflagrada diretamente ao próximo. ‘Freda’ ganharia demais com a exclusão de sua cena final, embora o crítico compreenda seu impacto.

Um grande momento
Freda, Esther e Geraldine de frente para o futuro.

[11º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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