Crítica | Festival

Quente de Dia, Frio a Noite

A inércia preponderante 

(Naj-eneun deobgo bam-eneun chubgo, KOR, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama, Comédia
  • Direção: Songyeol Park
  • Roteiro: Songyeol Park, Hyangra Won
  • Elenco: Hyangra Won, Songyeol Park, Seo Chul
  • Duração: 90 minutos

Impressiona como os sul-coreanos conseguem criar espinhas dorsais para seus filmes com uma profunda consciência de sua centralidade. ‘Quente de Dia, Frio a Noite’, que foi inserido na seleção da mostra Outros Olhares do Olhar de Cinema 2022, é um exemplo perfeito dessa constituição, onde seu cerne narrativo, embora crescente e expansivo, nunca se desvie de seu ponto principal. Tem um significado ainda mais plástico quando vemos esse rigor aplicado a um cinema clássico-narrativo, sem arroubos de investigação formal ou mesmo alguma experimentação imagética. Tudo o que é conseguido em sua composição está diretamente ligado a uma construção de muita consistência e qualidade, que une uma vontade incontrolável de contar uma história a uma labuta estrutural invejável.

Esse é o segundo longa do diretor Park Sung-Yeol, que consegue criar um andamento muito particular e maduro para sua produção. É um filme absolutamente conectado com o nosso tempo – afinal, é crise econômica na veia – aliado a uma qualidade rara, porém comum ao sul-coreano, que é a capacidade de nos conectar com profunda seriedade a um ambiente apresentado de maneira suave, às vezes até cômica. Sua personalidade se observa através desse ritmo muito particular das coisas, das normas banais do cotidiano e de uma apreensão constante para o próximo passo, em cena. São construções que parecem simples, à primeira vista, porque todo o quadro apresentado é fruto de um sentimento naturalista que perpassa todo o projeto, mas se insere naquele movimento um apreço claro à disruptura de gênero, que passeia pela atmosfera à espreita. 

Não é nada comparativamente explicitado ou esgarçado como a um projeto mais típico, mas existe sim uma lógica interna do roteiro de construção de camadas que atendam a uma proposta de comédia e drama com uma certa marcação. Sem atentar a convenções formalistas, ‘Quente de Dia, Frio a Noite’ se ergue em uma base concreta de atenção: um casal não consegue mais fugir da percepção óbvia de que o dinheiro acabou, e não está entrando nenhum novo. É uma linha tênue que apresenta essas amarras com discrição, sem apontar caminhos de soluções fáceis ou associações externas salvadoras. Nesse sentido, o filme se concentra em radiografar um estado de espírito que a própria crise difundiu, que é uma prostração irremediável diante do que está estabelecido, por pior que seja. Há o entendimento para mudar, mas definitivamente não há uma saída possível para um momento de melancolia. 

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Mesmo nos conectando a uma dupla de personagens muito fechada em si mesmo, o filme não se impede de criar uma malha narrativa que os complemente e absorva a estagnação de seus protagonistas, como a família de Jeong-hee  e um aparente amigo de Young-Tae, que adicionam caldos de diferentes matizes à receita. Ora intercalando em cada um situações de profundo desespero a questões ridiculamente absurdas, o filme compreende sua tábua de sustentação e caminha com muita segurança em um terreno que outras pessoas teriam menos assertividade e presença de espírito. A identificação é inevitável, na compreensão de um tempo de precarização do trabalho e de exploração emocional de uma derrota física ao ato de sobreviver como adulto. A crise econômica, que uniu muitas vias de entendimento, aqui exerce o papel de nos transportar para um universo de textura visível, sem deixar de explorar suas possibilidades de seu ‘storytelling’.

A unidade geral se fecha quando Sung-Yeol também edita e fotografa seu filme, e junto de sua parceira de roteiro, Hyangra Won, protagoniza ‘Quente de Dia, Frio a Noite’, revelando muitas outras camadas de seu talento (evidente em todos os quesitos), como também o máximo em autoralidade. Os 10 minutos finais de sua produção é um evento catártico ao avesso, que prova todos os pontos a respeito do que o filme evidencia em seus movimentos – a calamidade silenciosa e constante ao qual seus personagens se aproximam não é necessariamente real, mas nada além do que uma reiteração de seu fracasso em diferentes áreas e segmentos, sobretudo os que necessitariam uma mudança efetiva para que suas vidas se descolassem de vez do imenso cubo de gelo que habitam.

Um grande momento
O encontro dos amigos no parque para uma proposta de emprego.

[11º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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