Crítica | Streaming e VoD

Fresh

Sobrevivendo à luz da sororidade

(Fresh, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Terror
  • Direção: Mimi Cave
  • Roteiro: Lauryn Kahn
  • Elenco: Daisy Edgar-Jones, Sebastian Stan, Jojo T. Gibbs, Andreas Bang, Dayo Okeniyi, Charlotte Le Bon, Brett Dier
  • Duração: 104 minutos

Existe um preâmbulo a ser contado em Fresh, que relega os créditos do filme a chegarem somente depois de meia hora de produção. Estreia de hoje do Star+, a partir daí começa uma história muito difícil de dissecar sem spoilers, mas juro que vou tentar ser o mais discreto possível, como sempre. Toda essa apresentação, caso você tenha fugido de sinopse e trailer (é sempre a coisa certa a ser feita), indica uma estrutura cênica, incluindo nas escolhas estéticas. Situa-se quase numa zona da comédia romântica onde a jovem desiludida diz não ter mais interesse em relacionamentos até aparecer um certo príncipe. Se estivesse junto com a gente assistindo ao filme, Noa veria cada um dos enquadramentos escolhidos para apresentar e desenvolver Steve, e teria evitado os convites muito rápidos. Mas é a partir deles que o filme embarca na sucessão de acertos em seu desenvolvimento narrativo.

Se a roteirista Lauryn Kahn é quase estreante, a diretora Mimi Cave de fato é, e a julgar pela conexão conseguida nessa colaboração, deveriam ajustar interesses para novas parcerias, já que uma entende em absoluto o ofício da outra e complementam suas atividades entregando sempre mais do que a outra imaginou. Cave estampa seu protagonista com um rigor imagético para desenvolver sua psiquê através quase que exclusivamente do plano, abdicando de informações que o mesmo possa oferecer. Lembra, vez por outra, o que Gabriela Amaral Almeida promove com a imagem de Murilo Benicio em O Animal Cordial, talvez indo para escolhas ainda menos óbvias. A chegada à casa de Steve é igualmente um acerto de direção, que combina uma associação demoníaca ao exterior enquanto enxerga um interior intimidador, como observa Noa.

Depois desse princípio que vai do romance ao humor com habilidade, o longo caminho da viagem, sem diálogos e com a profundidade que as sombras produzem na tela, o filme adquire uma atmosfera que subverte o princípio de Corra!, pois percebemos que alguém ali está sinceramente sendo enganado, ao oposto do premiado longa de Jordan Peele. É a partir da dualidade entre esses dois tratamentos distintos, do choque que nasce desses dois momentos, que Fresh não teme sua beleza, com a fotografia do aclamado Pawel Pogorzelski (de Hereditário) como um ponto de excelência. Com sua luz ora extremamente naturalista, ora saturada, o filme nos ambienta em um caleidoscópio de eventos que precisam desse esquema intercalado para realçar o perigo crescente.

Apoie o Cenas
Fresh (2022)
Cortesia Sundance Institute

O que o roteiro de Kahn não tenta esconder, e ainda vai explicitando cena a cena, é o seu debruçamento sobre a sororidade. Suas personagens femininas, a princípio as amigas Noa e Mollie, são as únicas a apresentar empatia desde sempre, uma pela outra. Aos poucos, outras mulheres entram em cena e em especial Penny acaba ocupando participação importante no desenrolar da narrativa, mas principalmente no climax, onde o conceito explode de maneira irreversível. Não se trata de um longa fetichista em seu discurso, ao mesmo tempo em que se arma de um caráter do nosso tempo para justificar, a rigor, a disposição de seus personagens, homens ou mulheres. Ao servir com inteligência um cinema de gênero que se desenha de maneira peculiar, sempre adicionando novas camadas de diferentes informações, o filme consegue somar sem inchar o discurso.

Assim como não é explícita forma como Cave filma o mal, nas entrelinhas do roteiro e sempre associando sua porção a algo duro e impenetrável, essa sororidade que o a formatação de suas páginas abraça é igualmente discreto, mas absolutamente flexível a novos arranjos. Ainda que A Mulher não seja vista como figura em tudo próxima, tendo cada um suas próprias narrativas e escolhas, O Homem é exatamente unido em sua decisão contínua de relegar à sua parceira tarefas subalternas e de poder inferiorizado, que precisa ser destituído. O diálogo sobre a, digamos, diferença entre as peles feminina e masculina, verbalizado por um homem (lógico), é o ponto de convergência dessas temáticas, uma figura que é servilizada por outra, unicamente por seu gênero – o tal feminicídio. E, ao fim e ao cabo, resta ao macho… fugir ou sumir; que piada!

O desfecho, por si só, é uma parábola construída com muita precisão sem enganar o espectador, mas com uma certa beleza e rigor tão próprios ao que o filme apresenta até ali. A própria montagem ajuda na ideia desse ápice, porque Fresh em nenhum momento deixa de crescer e de apresentar novos dados, inclusive quando cria um paralelismo que poderia remeter a uma progressão da relação entre Clarice Starling e Hannibal Lecter, em sua aproximação gradual. Aqui, Noa vai muito além do que a personagem de Jodie Foster faz, se interseccionando em uma realidade cada vez mais sombria. O final, quando ela submerge dos porões do horror, é de um nível de catarse que só o cinema é capaz de proporcionar, vez por outra; se não valesse por tudo citado até então, os 15 minutos finais são uma prova viva de que o cinema sempre pode se reinventar, mesmo em seara já caminhada.

Um grande momento
Inúmeros porém “a culpa é sempre deles” é um diálogo inesquecível

Curte as críticas do Cenas? Apoie o site!

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo