Crítica | FestivalCríticas

Frevo Michiles

Somando a menos

(Frevo Michiles , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Helder Lopes
  • Roteiro: Helder Lopes, Paulo de Sá Vieira
  • Duração: 84 minutos

Existem dois J. Michiles. Aquele da vida real, homem-espoleta, criatura movida a energia solar, frevo e batuque, entidade viva que resgata toda a historicidade de um ritmo que traduz Recife, e existe também o homem que Helder Lopes reprogramou para caber em seu longa metragem, Frevo Michiles, primeira obra da competição do Cine PE 2023. Podemos enxergar Lopes como um cineasta, ou aqui especificamente como um domador de leões. Em sua responsabilidade, estava a de levar para as telas um homem inescapável em sua métrica, mas também em sua dialética – e em seu corpo. O resultado é um filme-híbrido, que não se envergonha do lugar onde está se inserindo, mas que tem a ousadia de tentar amarrar um foguete em pleno voo. 

Cabe então formalizar a inteligência que se percebe em Frevo Michiles, desde a gênese. O mais óbvio a um filme que tentasse moldasse um dos mais criativos compositores de um gênero tão brasileiro seria vibrar na sintonia de seu ritmo. Lopes compreende que, se Michiles é assim, seu filme não precisaria sê-lo, e constrói uma dinâmica muito particular a um filme documental que se entenda enquanto comunicativo. A experimentação, vejam só, é abdicar do lugar estratégico e já estabelecido do gênero para enfim atingir outros lugares do público que não o conforto. Entendida então que a ideia é destruir qualquer coisa que se imagine confortável, estamos então prontos para sermos abraçados pelo tanto de humano residente aqui. 

Quando resolve abdicar da estrutura mais engessada do documentário universal, as temidas (e, na maior parte das vezes, dispensáveis e hediondas) ‘cabeças falantes’, Frevo Michiles o faz pela consciência do que tem em mãos enquanto biografado, mas igualmente compreende seu potencial. Sem abrir mão jamais de seu caráter popular, da impressão que o seu personagem promove no outro, da estridência de que o frevo é capaz de produzir em uma plateia, Lopes desliga a energia da eletrificação e oferece um delicado ‘voz e violão’ para Michiles. Desse encontro de sensibilidades, o som e a imagem passam a se complementar mutuamente, mas não da maneira como imaginamos ser capaz, mas exercitando a imaginação diante do que o audiovisual promove. De uma banda sonora diferente da imaginada, surge um filme diferente do imaginado. 

Apoie o Cenas

O som que emana da produção é quase um projeto minimalista de reposição do ritmo, partindo do compasso de mãos e pés, do sopro dos instrumentos antes mesmo deles serem tocados. Um trabalho de composição sonora muito hábil em promover a partir do material humano a genialidade de um Homem que foi ‘criado’ pelo ouvido. Dentro dessa estrutura de compreensão do personagem, que desenvolveu sua cadência particular a partir de uma ideia quase autodidata da música, Lopes nos leva aos mesmos caminhos percorridos por Michiles, para só então nos apresentar ao FREVO, em sua majestosa forma. Ou seja, Frevo Michiles não nega absolutamente nada, nenhuma raiz, nenhum estímulo; seus predicados são o de justamente acoplar ao que já é estabelecido, uma ideia de cinema que o apresente, com e sem mergulho. 

Paulo Sá Vieira, que assina montagem e roteiro ao lado de Lopes (e entende-se muito bem ele em ambas as funções; um documentário tem sua história contada, na maior parte das vezes, na edição), é exímio no que faz, e estabelece um ritmo muito particular ao que está sendo mostrado. Assim como Marcelo Lacerda é outro ponto de excelência em cena, justamente por embarcar junto com seu diretor na criação de luzes para os planos de Lopes que não se imaginam tentando com frequência a um esquema documental. Porque Frevo Michiles, se chega ao espírito de seu personagem no privado ou no público, esse alcance é conseguido graças ao esforço em conhecer cada detalhe seu. De rosto, de mãos, de pés, o balanço incessante dos membros, a eloquência de cada gesto requebrado, a vibração que evolui do pano refletido no disco em movimento até o reflexo do espelho de seu constante óculos. 

É como se Lopes dissesse que, mesmo em posição de espera, Michiles está sempre em ação, e coordena o tempo de cada cena, que se estende pelo entendimento que cada plano pede. É do nosso encontro com a voz e os passos de Getúlio Cavalcanti, é do almoço familiar de onde surge o espanto de ouvir ‘Mirosa’ cantar seu clássico ‘Recife Manhã de Sol’ e de onde seu neto demonstra a herança fina que já lhe cabe, que Frevo Michiles parece maior a cada vez que pensamos nele. É uma produção que nos surpreende pelo ritmo estabelecido, mas que demonstra que essencialmente é assim que se aporta em uma aceitação popular de verdade, tal qual o próprio Cine PE já tinha apresentado anos atrás com um vencedor seu, Danado de Bom. Sem subestimar a sensibilidade de quem assiste, e entender que sua arte pode ser ainda mais complexa do que lhe é atribuída, Lopes joga holofote em suas imagens não por orgulho próprio, mas para celebrar o orgulho que tais pessoas têm de sua própria, e imensa, história. 

Um grande momento

‘Recife Manhã de Sol’ em família

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo