- Gênero: Documentário
- Direção: César Meneghetti
- Roteiro: César Meneghetti
- Duração: 80 minutos
-
Veja online:
O incensado, aquele jamais igualado, o santo guerreiro e enfant terrible do cinema mundial adquiriu nos últimos meses uma popularidade para além dos círculos de cinéfilos ou intelectuais revolucionários quando sua irrompida fúria contra o júri do Festival de Veneza, em 1980, invadiu as redes sociais. Xingando em bom ítalo-baiano ou italianês, o cineasta critica o velho cinema de vanguarda acadêmico (Theo Angelopoulos), o cinema americano fantasiado de vanguarda (John Cassavetes) e o cineasta de segunda classe (Louis Malle), amaldiçoando críticos como Michel Ciment por ignorarem a genialidade de seu Idade da Terra. Ele, vítima da intolerância e patrono de um cinema que fala do mundo, da economia, da política, do futuro, com uma linguagem nova. Ei-lo nas memórias, processos, falas, impressões e cenas recriadas em Glauber, Claro que foi exibido na 44ª edição da Mostra de São Paulo.
O documentário de cinema de invenção, produzido pelos cineastas Renato Ciasca e Beto Brant, tem roteiro e direção de César Meneghetti que evoca o vulto glauberiano com maestria, seja em imagens de arquivo, depoimentos de técnicos, amigos, amantes, críticos de cinema e atores de Claro – o filme realizado em Roma no ano de 1975. Um dos protagonistas do filme, Cachorro diz sentir a voz dele até hoje, muito próxima. Essa voz ganha materialidade imagética com o amor pelo cinema que escorre pelos poros desse filme, declarada carta apaixonada endereçada a Glauber Rocha. Dissecando cenas de Claro, ressignificando frames no paralelismo entre o negativo estourado, em tons magenta e imagens da Roma contemporânea, colorida, solar e onde encenam reencontros aqueles que conviveram com o gênio brasileiro durante seu exílio na Itália, Glauber, Claro exprime em sua narrativa aquelas “marcas que deixamos que são a essência da nossa vida.”
![Glauber, Claro - Documentário apresentado na Mostra de São Paulo](https://cenasdecinema.com/wp-content/uploads/2020/11/Glauber-claro_interno1.jpg)
No caso de Glauber Rocha, sua forma de moldar a transversalidade metafórica para não só tecer filmes revolucionários mas particularmente torná-los veículos para a manifestação de seu discurso artístico ideológico. Ele amava a arte e seus pensadores, como o poeta e cineasta Pasolini, que foi assassinado. Muito presente ainda que nunca visto na obra glauberiana. Nesse dia fatídico, Glauber, Claro, reconta como surgiu a ideia de filmar a vida de Cristo no terceiro mundo – que viria a ser o derradeiro filme, A Idade da Terra. E porque o título Claro, questionou um repórter do Paese Sera, em 23 de julho de 1975 no que obteve a resposta: “eu queria ver claro nas contradições da sociedade capitalista de nosso tempo”. E Glauber formula o que disse mencionando a cena final do filme, onde ele, sua equipe e os caminhantes da cidade ocupam toda a extensão da tela – pois o povo deve ocupar o espaço que lhe fora arrancado em séculos de repressão.
Bastante rebuscado, pictórico, em tonalidades róseas e passagens sobrevoando espaços romanos sob efeito do ácido, Claro representa uma importante guinada estética, rumo a uma cinematografia mais disruptiva, de oposição ao cinema mesmo das vanguardas. Uma aproximação Godardiana, catalisada pela presença de Juliet Berto a atriz-musa francesa que trabalhou com Jean-Luc, namorou Rivette e casou com Glauber: “nunca me considerei parte da Nouvelle Vague mas senti um marco cinematograficamente falando graças ao Glauber”, contou em conversa com a crítica de cinema Sylvie Pierre.
![Glauber, Claro - Documentário apresentado na Mostra de São Paulo](https://cenasdecinema.com/wp-content/uploads/2020/11/Glauber-claro_interno2.jpg)
Ela rolava pelos chãos da cidade eterna há 42 anos atrás, fato confirmado, dentre tantos outros memoráveis, por nove dos antigos colaboradores de Claro. São entrevistados em talking heads e também vistos em grupo, assistindo ao filme, gargalhando e mencionando momentos da filmagem. Um deles é o crítico Roberto Silvestri, que, atento a um frame onde se vê Glauber em close up, acompanhando “Índia”, canção ouvida em background na voz de Gal Costa afirma que o mesmo era um visionário que acreditava para além das utopias das suas visões.
Não temos heróis, apenas vítimas
Como forma contumaz de tridimensionalizar suas fundamentações, Glauber se coloca, o que é algo até então inédito, como personagem no longa italiano. Ele aparece em cenas íntimas com Berto ou explorando vielas romanas com ela, a dirigindo e conversando com outros membros da equipe. “Um homem que girava o mundo, que absorvia a cultura e a cinematografia italiana, francesa e alemã sem igual” – alude Marco Bellocchio, reforçando o aspecto arrojado de Glauber e de Claro, para ele um filme alinhado com toda a contracultura de Roma.
![Glauber, Claro - Documentário apresentado na Mostra de São Paulo](https://cenasdecinema.com/wp-content/uploads/2020/11/Glauber-claro_interno3.jpg)
Glauber, Claro é testemunho numa aliteração semiótica da obra aberta que é Claro. O documentário traz em si a afirmação de que é possível entortar as estratégias do gênero em mesmo se tratando de existir para homenagear ou revisar a obra de um artista. Porque o que se oferece enquanto resultado, dispositivo, gênese da feitura de Claro – o filme – e da marca indelével que Glauber deixou na capital italiana, com essa produção e com trocas com Bertolucci ou colaborações com o ator e realizador underground Carmelo Bene, tende a ser muito precioso. Assisti-lo desperta uma necessidade de passar a noite discutindo e idealizando o mundo, pensar que é possível mudar tudo com a poderosa arma que é o cinema.
Um grande momento
Roma de ontem e hoje convulsionando, homem de amanhã