Crítica | Festival

Going to Mars: The Nikki Giovanni Project

A dona da voz

(Going to Mars: The Nikki Giovanni Project, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Michèle Stephenson, Joe Brewster
  • Roteiro: Michèle Stephenson, Joe Brewster
  • Duração: 96 minutos

Mulher

ela queria ser uma lâmina
de grama entre os campos
mas ele não concordaria
em ser um dente-de-leão

ela queria ser uma ave cantante
no meio das folhas
mas ele se recusou a ser
sua árvore

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ela se lançou numa teia
e procurando por um lugar pra repousar
foi até ele
mas ele permaneceu duro
recusou ser seu canto

ela tentou ser um livro
mas ele nunca a leria

ela se transformou num bulbo
mas ele não a deixaria crescer

ela decidiu se tornar
uma mulher
e embora ele ainda se recusasse
a ser um homem
ela decidiu que estava tudo
certo¹

Nikki Giovanni é uma das mais importantes vozes negras dos Estados Unidos. Conhecida como “Poeta da Revolução Negra”, é uma pensadora, escritora, comentarista, educadudora e ativista que nunca parou de se manifestar e reafirmar a importância de se posicionar, de contar a sua história e a história de seu povo. Apaixonada pela jornada e pela vida, está no centro de Going to Mars: The Nikki Giovanni Project, documentário da dupla Michèle Stephenson e Joe Brewster.

Como não poderia deixar de ser, arte e pessoa estão ali em comunhão, em resgates de arquivo e passagens que expõem o cotidiano estadunidense e seu reflexo nas palavras da poeta. A história de Giovanni, sua infânica, seu amadurecimento, suas relações mais íntimas estão lado a lado com a História, com o ser negro em uma sociedade que oprime, exclue e mata, tocando em pontos como a autopercepção, o preconceito e a invisibilidade. Ela é o centro dessa noção, em textos rimados, alguns narrados pela atriz Taraji P. Henson, ou em seus próprios depoimentos em pérolas extraídas de entrevistas ou trechos de uma preciosa conversa que teve com James Baldwin.

Going to Mars: The Nikki Giovanni Project
Cortesia Sundance Institute

A interessante conexão com o estar fora do planeta se dá de forma muito natural e, muito palpável em toda a trajetória da ativista, tem ligações não só com seu senso aventureiro. Stephenson e Brewster trazem isso ao filme de forma poética e coerente com sua obra. Com a competente montagem de Terra Long e a trilha envolvente de Christopher Pattishall e Samora Pinderhughes, belas imagens do espaço sideral invadem a tela, levando o espectador para ainda mais perto de Giovanni. É como se para além de conhecê-la, vivenciássemos suas compreensões e desejos.

A viagem a Marte só pode ser entendida através dos negros americanos

A importância de Nikki Giovanni é destacada a todo momento. Seu reconhecimento nas ruas, seus convites constantes para estar nos mais diversos lugares e a sua capacidade de resiliência e permanência. Reconhecida nas ruas hoje, sua voz ainda reverbera com os mais jovens em um festival de hip hop do mesmo modo como fazia no passado. As conexões temporais de Going to Mars não são homogêneas e seguem a postura da própria documentada. Há uma questão de impessoalidade e pessoalidade, questões que ela não quer que sejam lembradas por sua visão, mas pelo fato em si, e outras pessoais que são apenas dela.

Going to Mars: The Nikki Giovanni Project
Cortesia Sundance Institute

Um momento muito forte de Going to Mars é quando um aluno pergunta, em uma roda de conversa onde ela estava no dia do assassinato de Martin Luther King, e ela responde que sabe que essa é a data, mas que não se recorda. O evento traumático está de outra forma no filme, e também em seus escritos, mas não é pela sua impressão, ali, daquele jeito, que ela quer que seja lembrado. Do mesmo jeito, outras passagens históricas têm outros aprofundamentos, como a morte de Emmett Till, o assassinato das meninas na igreja de Birmingham e a revolução começada por Rosa Park. Por outro lado, as relações de Giovanni com o filho, a neta e a companheira de toda a vida, são abordadas de maneira suave, têm relevância, mas sem grande alarde.

A história do nosso povo é uma grande história, e é nosso dever contar essa história

Os depoimentos trazem sua compreensão político-social, com análises sobre transferência de opressão e violência estrutural; o fato de não apenas ser negra, mas ser mulher negra naquela sociedade; e a importância da educação. Também ressaltam a força e a determinação da poeta e ativista para fazer com que a História não se perca. Sua firme compreensão e reafirmação dos passos já dados em relação aos direitos humanos é muito clara, assim como o fato de que eles não serão percebidos da mesma forma pelas novas gerações. As lutas precisam ser sempre lembradas. 

Going to Mars: The Nikki Giovanni Project
Cortesia Sundance Institute

Por trás da mente brilhante e de toda a sua grandiosidade, está a mulher, com sua jornada de vida cheia de histórias, sonhos e desejos, inclusive através do tempo e que lida agora com a velhice. Going to Mars: The Nikki Giovanni Project a alcança plenamente, num retrato bonito e reverente, respeitando a sua vontade de ficar aqui, mas, ao mesmo tempo, seguir caminhando e partir para lugares distantes.

Não me lembro de muitas coisas. Mas muita coisa que não lembro, não escolho lembrar. Lembro-me do que é importante e faço o resto. É disso que se trata a narrativa

Um grande momento
Ela pode chorar

¹ Poema publicado no livro “Cotton Candy On a Rainy Day” (1978), traduzido por Desirée dos Santos

[Sundance Film Festival 2023]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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