A mostra Forum Expanded da Berlinale exige muito do cinéfilo com parâmetros muito mais abrangentes do que é e pode vir a ser cinema. Essa mostra é pra quem está sedento por novas aventuras sensoriais nos quesitos, luz, som, trilha sonora, roteiro. Ferramentas “clássicas” do cinema podem angariar aqui novas dimensões de percepção ou mesmo serem deixadas de lado.
Confesso que essa mostra nunca é o meu foco principal na cobertura do festival. Mas nesse ano de 2020, no qual a Berlinale faz 70 anos e a gente se acomete do sentimento de mudar para uma casa nova depois de décadas em uma que se conhecia cada canto de poeira, cada dobradiça velha de porta e cada tom assombrado vindo do nada. A casa nova oferece possibilidades, mas os primeiros tempos nela, podem ser de estranhamento, até que o gelo seja quebrado, e isso pode demorar.
Novos horizontes
A mostra Forum Expanded em 2020 exibe verdadeiras joias cinematográficas. Ela não é para quem tem nervos fracos e muito menos para quem romantiza o cinema como um passeio no shopping recheado de pipoca ou uma cervejinha gelada. Nein!! Esse ano, a seleção pode ganhar o adjetivo de Delicatessen Visual. “De quebra” o programa ainda exibe a famigerada temática “linha vermelha”: os temas abordam e questionam a identidade, o ódio que se apoderou do Zeitgeist e a necessidade da volta às origens num mundo cada vez mais hostil.
Vamos combinar: Berlim foi o melhor solo para a atriz, diretora e produtora mineira, Grace Passô apresentar seu trabalho. Ela é uma mulher do teatro. Uma atriz que vai aonde o povo está. Não que tenha sido sua primeira vez em Berlim, mas na Berlinale e em mostra para quem se dispõe a investigar os caminhos nada clássicos do cinema, foi Premiere. Mas Grace é livre de estrelismos, tagarelices e outras vaidades pueris e mazelas de quem acha que está sendo filmado o tempo todo ou que perdeu o sentido do que é público e do que é privado.
Era uma manhã chuvosa na capital. O cinema Arsenal se enchia aos poucos. No saguão, Grace, usava óculos da época de 1970, com aquela armação dourada que me lembrou meus tempos de escola em solos tijucanos. Já dentro do cinema, ela foi apresentada pela curadora da mostra, Stefanie Schulte Strathaus. A tradutora pecou pela insegurança, pelo “engolir” de aspectos importantes delineados por Grace. Ela (como todos os presentes) mesmo percebendo, manteve a postura e a gentileza.
Vozes, Vozes, Vozes
Confesso que já havia conferido o filme na “nuvem”, mas no cinema, os sentidos enlouquecem. Tudo escuro. Depois do aparecer de uma série de produtoras envolvidas no filme na tela, uma voz invade um dos mais lindos cinemas e de técnica mais apurada da capital, enquanto a tela permanece sem nenhuma imagem: Black! A voz é doce, sensual, precisa. A respiração também. Os intervalos, o desestruturar de expectativas visuais (o DNA da mostra Forum Expanded) são acompanhados de um texto que é um manifesto sem quaisquer mazelas dogmáticas. Ela fala da matéria, dos patos, dos cachorros, dos cafés. O que acontece quando a matéria invade o café? “É um rock. Ele te joga de lá pra cá. Não é para quem tem nervos fracos”, diz a “matéria” arrancando os primeiros risos soltos da plateia.
Ela fala de vários temas até pronunciar a palavra “mulher”. É quando aparece, pela primeira vez, a imagem de uma mulher que será a primeira, de muitas. A presença física de afrodescendentes, mesmo sem texto, é um colírio muito mais do que visual. Ele angaria a obra, uma honestidade de fazer levitar.
No cinema não se ouvia uma mosca. Até os ataques de tosse deram uma trégua. Ninguém saía. Ninguém entrava. Nas cenas com alinhavado cômico, os alemães se deliciavam. Por vezes com o tempero da ironia, por vezes com o ingrediente da ousadia em escolher. O filme também nos esfrega na cara da forma mais amorosa possível, aquilo que nos tornamos: implacáveis julgadores de plantão. Tudo é motivo pra julgar. Ela fala do ódio, dos homens pequenos e zomba deles com a soberania só presenteada àqueles e àquelas que sabem exatamente o que querem: “Você não. Você também não”. A platéia se delicia.
Depois da exibição do filme, mesmo com grande atraso devido à tradutora que “segurou” a atriz/produtora e diretora por muito mais tempo do que deveria, Grace concedeu entrevista exclusiva ao Cenas.
Cenas do Cinema: Você chegou a Berlim, o mais político festival do mundo, num momento de convulsão política, tanto na Alemanha como no Brasil, que sofre um estrangulamento sistemático do setor cultural, uma criminalização da classe artística e um considerável aumento da taxa de feminicídio. No teu filme você menciona os lobos vorazes que estão rondando as mulheres no Brasil ou no mundo. Quem são eles?
Grace Passô: (risos) Boa Pergunta. Não são exatamente pessoas. É um pensamento que tem como fundamento estrutural a ideia de que a força do homem hétero normativo é uma supremacia na nossa sociedade. Todas as ideias que perpassam um universo paternalista e machista. É tão estrutural que está em nós mesmos. Hoje, ela está sobretudo, em lugares de hegemonia de poder instaurado. A nossa sociedade construiu, ao longo de muito tempo, associações da ideia de mulher que as colocam sempre num lugar de inferioridade, de falso romantismo; num lugar menor. Sociedades associam a ideia de virilidade como algo maior, como aquilo que coordena e manda na nossa sociedade. Talvez os lobos ferozes sejam eles. Tudo o que ainda não conseguimos destruir em relação à dominação hétero-normativa.
CdC: Continuando na metáfora dos lobos ferozes, o que mudou para você como artista, depois de Bolsonaro assumiu o poder?
GP: Em termos muito concretos e práticos: há uma perseguição tão grande e tão sistemática do setor cultural brasileiro que, de fato, vários amigos e colegas de trabalho tem tido muito dificuldade de trabalhar. Existe um operariado artístico enorme no Brasil! Nós somos criadores, somos artistas e também somos operários artísticos.
Os artistas no Brasil hoje têm ainda muito mais dificuldade de trabalhar algo que já existia há muito tempo, especialmente no que diz respeito às produções periféricas. As pessoas que têm menos dinheiro no Brasil e não estão ligadas a uma burguesia artística sempre tiveram muita dificuldade de trabalhar, mas agora isso se expandiu, se multiplicou.
Os mecanismos de censura, hoje, são extremamente complexos. Eles não “só” imitam censuras que já aconteceram no Brasil antes. Existem formas novas de operar essa censura, através da lei, inclusive. Além da censura, esse governo investe de forma muito forte na publicização da ideia de que a arte não é importante. De formas diferentes, ele investe numa propaganda de que a arte é algo menor.
CdC: De que o filme não chega no Oscar…
GP: É (risos)… e de que, artistas, de um modo geral, não interessam para a sociedade brasileira. O atual governo não governa. Na verdade, ele se vinga, como é uma classe enorme formada por diversos setores e que praticamente nenhum desses setores apoia esse governo, e essas forças que estão aí. Ele simplesmente se vinga, porque não sabe fazer política.
Mais perigoso do que a censura, é esse investimento em uma propaganda errada e caluniosa em relação ao que é a arte. Isso é muito perigoso, na medida em que a sociedade brasileira construiu, ao longo da sua história, concepções muito frágeis sobre o que significa a arte e o trabalho artístico.
CdC: Como andam os seus projetos?
GP: Existem muito menos editais. Eu mesma tenho vários editais paralisados, tanto no cinema como no teatro, que são as duas áreas em que eu trabalho. Objetivamente existe uma censura, perseguição e uma dificuldade muito grande de trabalhar.
CdC: Quando vou nas redes sociais e olho os comentários sobre o seu trabalho, a ressonância é, com algumas exceções, positiva. Certa vez, uma usuária te achou parecida com a atriz Cacau Protásio, que ficou popular na novela Avenida Brasil e questionou porque você não foi trabalhar na Globo, já que, para muitos, atuar nessa empresa é sinônimo de “ter chegado lá”. É um sonho pra você fazer novela na Rede Globo ou esse pensamento nem passa pela tua cabeça?
GP: Eu sou uma atriz que quer viver várias experiências que sejam importantes para a minha vida. Elas podem vir de várias formas: porque o discurso estético me interessa, porque o dinheiro me interessa. Eu quero ter várias experiências. Eu nunca tive nem tenho o sonho de estar na televisão porque a TV nunca me mostrou ser um espaço que me quer, (não) essa televisão brasileira que está aí. Claro que é difícil generalizar. Esse sonho que está no imaginário de muitas atrizes e muito atores, não faz parte do meu sonho. Eu tenho sonhos, outros: de construir discursos necessários, criar e inventar obras e projetos que sejam necessários, que sejam espaços de reunião e convergência de pessoas, de pensamentos, reflexões. Uma pessoa como eu, é difícil sonhar com televisão.
CdC: Uma pessoa como você? Como assim?
GP: Eu estou completamente distante dos padrões que a televisão brasileira cultua.
CdC: Quais são eles?
GP: Uma ideia de mulher. Não tem motivo pra mim, idealizar tanto uma televisão. Ela nunca me amou, a minha imagem. Eu não vejo meu corpo ali num lugar de respeito, de narrativa de pessoas que amam, que pensam. Tudo o que eu consigo perceber que é parecido a mim, não incensa pessoas como eu. Foi através do teatro que eu pude escrever as minhas coisas, me encontrar com outras gentes e criar e fazer um trabalho verdadeiramente autoral.
CdC: No teu filme você fala muito do poder da palavra. Minha pátria é minha língua, é isso?
GP: As palavras são muito importantes, mas também muito difíceis.
CC: Difíceis por que?
GP: Porque elas, às vezes, limitam, mas é o movimento de tentar superar a limitação da palavra e entender a dimensão libertária dela que me interessa. Escrever pra mim, sempre foi um processo muito importante nas criações das peças que eu faço, independentemente se eu as assino ou não. A palavra é um veículo de relação, mesmo sabe? Através delas, eu consigo me relacionar ou pelo menos, eu consigo organizar as questões primordiais da minha existência e minhas reflexões mais profundas, para (poder) estar com outras pessoas.
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