Greice

Leonardo Mouramateus está em seu terceiro longa-metragem, e em seu décimo-quinto filme (espero ter contado certo). Nessa carreira, iniciada em 2011, sem arrogância percebe-se a manutenção de um exercício de autor, com coerência e artesania para criar não apenas “um nome”, mas uma cinematografia que faça sentido, de um pólo a outro. Greice é um novo capítulo dessa empreitada, mas se a sua bem-vinda incursão na comédia sobrevive para além das associações com sua longa carreira, especialmente conversa com o corpo do autor por trás de tantas outras obras, hoje especiais dentro do nosso recorte de Cinema. Existe a vontade muito fervilhante de contar histórias, de ser a Sherazade de si mesmo, fazendo da arte da fabulação um material constante para revolver memórias e histórias, passado e presente. 

Reencontrar esse autor e assistir ao que é movido aqui é me pegar rememorando a (para alguns, exagerada) afirmação que fiz na ocasião do lançamento de António Um, Dois, Três, e vi em Mouramateus uma espécie de mantenedor do cajado de Abbas Kiarostami – e dos mestres iranianos em geral, de Mohsen Makhmalbaf a Asghar Farhadi. Com eles, o diretor encontra vestígio para ir além de uma simples perfumaria na arte de contar histórias; isso é relativamente simples de se conseguir, e não são necessariamente não-usuais tais táticas. O que a obra desse jovem (e ele ainda só tem 33 anos!) regula é ampliação desse escopo, indo para outras curvas que não a mais básica; não conta-se apenas histórias, mas o cerne primordial de tais gênesis, e tudo o que vêm a reboque das fábulas e suas ampliações. 

Seria ingênuo afirmar que Mouramateus está fazendo uma elegia à contação, porque o âmago é ainda maior que isso. São histórias que ora não querem ser contadas ou ouvidas, ora sustentam outras histórias para onde servem de base, ora tem formato oral e em outro momento, imagético, mas sempre vão além de uma camada inicial. Vejam o exemplo de Greice, uma obra que, lá pelas tantas, também está promovendo uma discussão sobre a validade da arte e de sua representação física a partir do que não está sendo vivido no plano, mas de uma criação verbal (Cópia Fiel, é você?). E isso tudo nem é o ponto de partida, e sim a tradição de seu autor em mais uma vez promover um jogo sobre o que contamos (para os outros e para nós mesmos), e em como nossas fábulas diárias são capturadas por quem nos ouve e como nos interpreta. 

Greice se inicia com uma narração sobre um fundo preto – o início dos tempos, em como a fabulação é modelo criador do que somos. Para, enfim, ser amarrada finalmente, ao enfim mostrar o que o roteiro sabiamente censura; não é sobre o que sabemos, mas como as histórias ressignificam cada um de nós e cada um que é afetado pelas mesmas. Talvez esteja nessa decisão a abertura da “caixa de Pandora” do filme, que enfim mostra o que seria A Verdade, quando o filme afirma a todo tempo sobre como até ela é subjetiva. Ainda assim, tal escolha também está condicionada a libertar uma personagem sob a qual reside uma dúvida excruciante que só a um corpo preto é capaz de matar; o personagem branco está e estará sempre e constantemente livre, por sê-lo. 

Eu poderia estar afunilando minha identificação com Greice, com a forma imaginativa com a qual ela enfrenta um mundo que foi feito para duvidar dela, e em como não percebo nela nem resquício de amoralidade por tal; a personagem-título, na vida real, é uma entre tantas, como os próprios outros personagens exemplificam. Na obra-base, ela é uma mulher que incorre em pecadilhos em formato de historietas, que podem ou não se desenvolver de maneira satisfatória. Para além do que está sendo contado de concreto, o que Greice desenvolve é um conceito de reestruturação de quadros narrativos, que se desenvolvem para outros e para outros e para outros, sempre ampliando suas possibilidades. Ou seja, vai além de uma taxação verbalmente pobre (‘mentirosa’, ‘picareta’, ‘malandra’, …), para ter à sua disposição uma personagem que em difere dos seus pares, a não ser para pessoas brancas. 

Para impedir qualquer caricatura ou mesmo um estereótipo dispensável, o diretor conta com a infinita sabedoria de Amandyra na frente das câmeras, que elabora um trabalho que corta qualquer possibilidade para tais lados. Auxiliada por um elenco de brilho (Mauro Soares está cada vez melhor; Dipas é uma revelação; Luciana Souza, com o que o pouco que têm, mostra por que é do tamanho que é), a atriz da série Da Ponte pra Lá mostra o tanto que seu trabalho amplifica essa linha de raciocínio sem culpabilização. Não há nem picardia, nem imaturidade no que ela mostra, e sim uma naturalidade com a forma como observa o que faz, e o que é feito para ela. É daqueles momentos onde conhecemos alguém – atriz e personagem – e seguimos na torcida por voltar a encontrá-los em sua evolução. 

Prefiro observar que o roteirista Mouramateus vê um diretor Mouramateus cada vez mais sofisticado no que está mostrando. Seria leviano dizer que o diretor está mais maduro, quando curtas do calibre de A Festa e os Cães e Vando Vulgo Vedita já foram paridos e deixado claro em que prateleira está o talento do artista. Mas é necessário falar sobre a concisão do que é projetado em tela e em como a fluidez de seu roteiro é traduzida de maneira orgânica pelos alguns passeios de ‘travelling’ que o filme fornece, onde não existem planos sujos ou interrompidos. Algo precisa ser dito sobre Leonardo Simões, o fotógrafo de Greice: ele é o colaborador de Pedro Costa, ou o responsável por Cavalo Dinheiro e Vitalina Varela. Ou seja… nem têm o que dizer para além disso. 

Estamos diante de um artista que ainda falta um tanto para chegar ao seu auge, não porque ainda não tenha entregue excelência, mas pela idade tão prematura; se o presente já é ocupado por algo que nos provoca como Greice, o futuro é absolutamente desconhecido. Ainda bem. As cenas entre Amandyra e Isabel Zuaa (de As Boas Maneiras) apontam para um amanhã onde a necessidade de novas histórias será banal, porque elas estão nascendo e sendo contadas com um naturalismo puro. Sem panfleto, Mouramateus reincide como fabulador sem perder a vontade da comunicação e o desejo de mostrar próximos capítulos melhores, onde a revolução seja mais um dia, mais uma história. 

Um grande momento

“Podemos ver sua piscina?”