(High Life, FRA, GBR, ALE, POL, EUA, 2018)
O medo da paternidade. Uma casa assombrada. Não, medo da paternidade não, despreparo puro e simples. Uma prisão de segurança máxima. Pensando bem, nem medo nem despreparo, mas a insegurança e o amor, acima de todas as coisas. Sobre tudo isso o cinema já versou, das mais diferentes formas. Claire Denis (de Bastardos) tem uma carreira tão singular que resolveu unir todos esses elementos em High Life – incluindo os solavancos que transformam e sublinham uma relação entre pai e filha – e encapsulá-los em outro recorte de gênero, fazendo com isso uma ficção científica muito particular; com sua visão sem par, construiu uma espécie de “matrioska” cinematográfica, e quanto mais abrimos, mais um novo horizonte se avizinha.
Com mais de 15 minutos, os primeiros acordes da trilha se fazem presente e o título se apresenta em cena impactante. Até ali, uma situação pra lá de surreal já tinha se apresentado – Monte vive numa nave no espaço ao lado de sua filha bebê Willow. Ao desenvolver esse primeiro tema, a diretora não nos deixa esquecer que é a diretora de 35 Doses de Rum e que, mesmo em busca de explorar outros desdobramentos de gênero, seu olhar impregnado de realismo será essencial aqui, quando sua argamassa estiver longe do mesmo. É a configuração tão ordinária dos elementos humanos que irá modelar um exercício arrojado, que apenas pincela o fantástico para realçar o lado mais de sua autora.
Claire se diverte em High Life com os mandamentos do cinema padrão hollywoodiano ao subverter seus dogmas ao mesmo tempo em que claramente os exalta. Como é de costume em sua carreira, a diretora segue mais uma vez a promover uma deturpação não apenas do que se espera do seu ofício de maneira abrangente, ao mesmo tempo em que desmonta as certezas do espectador que espera um cinema mais doutrinado. Sua visão é ainda mais fora do padrão justamente por, aqui e ali, assumir uma proposta tão frontal de gênero, depois de produzir uma geleia geral de múltiplos significados e referências; nada mais anárquico que abandonar a anarquia.
Entendemos que sua intenção primal era nos surpreender com a ambientação espacial quando na verdade sua intenção era incorrer no gênero “brucutu” por natureza dos filmes de presídio quando boa parte dos 105 minutos do longa são ocupados por essa fatia de gênero, sem qualquer metáfora. A ideia é explícita: condenados pela justiça passam por um programa científico e aos poucos essa clausura começa a realçar seus pontos negativos, quando também a vontade de fugir se torna insustentável. Pense em todas as típicas cenas de produções como Condenação Brutal e Garantia de Morte, e muitas delas estão aqui tratadas com absoluto respeito por Claire – que deixa mais uma vez claro seu carinho pelo cinema direto, costurando autoralidade e clamando por um olhar sem preconceito a esse cinema.
Na linha de frente, Robert Pattinson escreve mais um capítulo na sua biografia da redenção, já devidamente alcançada. Ao comparar o protagonista de Sob o Sol do Oeste (para ficar exclusivamente no último filme assistido) com o centro dessa trama, um abismo se abre de concepções díspares; se lá um exagero sufocante tomava conta de sua performance, aqui sua introspecção, sua desestabilização diante do choro da filha, seu controle extremo, o faz absorver uma atmosfera muito única dentro de uma produção com propostas tão amplas de recortes de personagens, a maioria calcado em estereótipos.
Se tem algo em High Life que causa um ruído em sua comunicação com o público (e talvez seja o único) é seu excesso de verbalização no miolo da narrativa. Partindo do pressuposto que o filme inúmeras vezes empreende a inteligência do público e o deixa livre, algumas frases de uma narração em off são expositivos demais para o longa que veste. Ainda assim, Claire permanece concebendo um trabalho imagético que não apenas impressiona, como ecoa questões filosóficas e políticas, ainda que dessa vez sua porção crua quase tenha suprimido o outro lado de suas intenções.
Um Grande Momento
O balé do descarte pré-título.