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Histórias que nosso cinema (não) contava

(Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava, BRA, 2017)
Documentário
Direção: Fernanda Pessoa
Roteiro: Fernanda Pessoa
Duração: 80 min.
Nota: 7 ★★★★★★★☆☆☆

Anos 70. O Brasil passava por um período de horror político. A ditadura militar ganhava cada vez mais força e se impunha através de atos institucionais. O pior deles, o AI-5, se estabelecera anos antes, legitimando a perseguição política e a censura. Nos cinemas, como sempre, a produção nacional lutava para ganhar mercado, e quem conseguia levar o público às salas era mesmo a pornochanchada. Gênero maldito, tratado com desdém, seus filmes demoraram a receber o olhar crítico, ainda hoje insuficiente. Sua presença nos veículos de imprensa à época geralmente se restringia aos anúncios de programação e, na maioria das vezes, quando ganhavam algum outro espaço, era para que fossem diminuídos e menosprezados.

Histórias que nosso cinema (não) contava resgata esses filmes e demonstra o quanto é importante que se olhe para eles. Não que a tarefa seja fácil nos dias de hoje, com outra consciência social, mas é sem dúvida necessária. Dirigido por Fernanda Pessoa, e contando com a preciosa montagem de Luiz Cruz, o documentário, sem cartelas explicativas, narração ou entrevistas, e usando quase 30 produções da época, faz uma radiografia do período político e da própria sociedade brasileira.

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Por trás de todo o erotismo, fenômeno não exclusivo da cinematografia daqui no período, há não só uma exposição socioantropológica, mas também uma crítica ao que então acontecia no país. Aqueles olhares iam ao passado buscar explicações, e metáforas expunham o regime, as estruturas sociais e o preconceito que embasava relações de gênero e classe.

Com um mix de filmes de David Cardoso, Sílvio de Abreu, Jean Garret, Denoy de Oliveira, Carlo Mossy, Adriano Stuart, Alberto Pieralisi, Ody Fraga, Antônio Calmon, entre outros, Fernanda reconstrói a história do Brasil justamente com aquilo que se julgava não existir nos títulos, encontrando o “não” entre parênteses que usa para dar nome a seu longa.

Há uma preocupação em localizar temporalmente o espectador, com definições bem marcadas. Cenas extraídas de comédias eróticas servem para narrar cada um desses momentos. O prólogo aborda a falácia do descobrimento e remete à colonização e ao eterno estado de povo colonizado. Passa-se então à imposição capitalista em contraposição às pautas socialistas que chegavam com o governo João Goulart e cria-se, então, um inimigo a ser combatido: o comunismo.

O medo de perder seus privilégios leva àquele primeiro de abril, exposto no filme com cenas de militares, perseguições de políticos, prisões, baculejos, e, ao próprio AI-5, com a óbvia citação ao regime do filme de Oswald de Oliveira, Histórias que Nossas Babás Não Contavam (embora lançado apenas no final da década), onde uma rainha seminua anuncia as primeiras ordens de seu reinado: os atos reais institucionais.

É ao chegar nos anos 70 que Fernanda abandona seu espectador e deixa que ele tome as rédeas da compreensão. Estão ali a busca pelo progresso (na acepção comtiana), a invasão econômica estrangeira e a influência dos Estados Unidos, além do empoderamento da classe média. Está, também, a formação social dos indivíduos daqui e é preciso despir-se de preconceitos e reforçar o estômago para acompanhar a compilação: machismo, escancarado em frases extremamente misóginas e abjetas, não apenas pelos homens, mas também arraigadas nos discursos das personagens femininas; racismo, na exposição da diferença de oportunidades e na objetificação ainda mais acentuada do corpo das mulheres negras; homofobia, com a ridicularização e afetação dos homossexuais, e preconceito com os nordestinos, em sua “ocupação” das cidades grandes.

Por trás de tudo, está o abismo das classes sociais, exposto em discursos que comprovam a desumanização dos mais pobres e o desrespeito aos operários, trabalhadores domésticos, e da economia informal. Uma estrutura equivocada, onde uma pequena parcela se prevalece das parcas condições de sobrevivência do outro, do abandono do Estado.

Além da exploração do humano, Histórias que nosso cinema (não) contava também procura – e encontra – nos filmes o que trate do regime político. Demonstra a censura, a resistência organizada e armada, as prisões ilegais, torturas e mortes nos porões da ditadura. Da mesma maneira que busca o humor para criticar a ignorância dos militares e a precariedade das ações coordenadas com cenas do filme O Enterro da Cafetina, de Alberto Pieralisi, incomoda com as torturas em E Agora, José? (Tortura do Sexo), de Ody Fraga.

O que ocorria em paralelo a tudo, o conformismo imperante e uma certa apatia, também está no filme, com a alienação da elite embriagada pela nova sociedade de consumo, manipulada pela televisão e ainda muito afeita a dogmas religiosos. O apego em se observar a tradição, família e propriedade, sem se preocupar com o que quer que estivesse acontecendo fora de casa.

Isso, claro, até que o milagre econômico caísse por terra e a crise, com inflação e dívidas externas impagáveis, surgisse junto com um lampejo de conscientização social, refletido em novos e tímidos movimentos, como o feminismo (com temas como divórcio, aborto, pílula anticoncepcional, orgasmo) e a consciência grevista. É o que leva o filme em seu caminhar para a abertura e a anistia, promulgada no fim de 1979 pelo presidente João Batista Figueiredo.

Com um trabalho vigoroso de montagem, é possível perceber que as chamadas pornochanchadas iam muito além do que se poderia apreender em olhadas rápidas e desinteressadas. Como um produto de sua época, obviamente estava contaminado por aquilo que o circundava, por mais que seus corpos nus ou suas cenas de sexo chamassem mais atenção. E isso Histórias que nosso cinema (não) contava traz de maneira muito positiva e interessante.

Porém, do mesmo modo, como um filme de sua época, o documentário alcança um resultado que se identifica com aquilo que hoje, quase 50 anos depois, existe na sociedade. Em seus recortes e nas opções de montagem, há muito da ideologia de Fernanda Pessoa. O escolher de cada uma daquelas cenas e a composição que se forma, com seu posicionamento estudado, passam uma mensagem que ganha corpo próprio, muito mais pessoal e bem além do que foi todo um gênero cinematográfico.

Não deixa de ser curioso observar a criação do discurso pela apropriação. Porém, o mais importante neste documentário de montagem está no desmistificar de uma época do nosso cinema, no resgate pontual de uma parte da produção nacional que ainda se encontra escanteada e, por mais que hoje já encontre aqueles que se interessem por analisá-la, ainda sofre muito preconceito. Como diz a última cartela do filme, “é a nossa história”. E o olhar crítico para qualquer parte do nosso passado é sempre fundamental.

Cabe lembrar de Carlos Roberto de Souza e Francisco Luiz de Almeida Salles, ao falar do pouco conhecimento da história do cinema brasileiro e de seus filmes, justamente pelo descuido usual com que nós olhamos para trás: “a efemeridade do espetáculo cinematográfico brasileiro é comparável à do espetáculo teatral; após a exibição dos filmes, estes se tornam imediatamente passado, mergulham no esquecimento e desaparecem”¹. Histórias que nosso cinema (não) contava, por mais que esteja enquadrado em uma fôrma ideológica, chega justamente para contrariar esse movimento.

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¹SOUZA, Carlos Roberto de; SALLES, Francisco Luiz de Almeida. A Fascinante Aventura do Cinema Brasileiro – II. In: O Estado de S. Paulo, Suplemento do Centenário, p. 6, 1/11/1975.

Um Grande Momento:
“É impressionante! Nunca vi tanto realismo!”

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Crítica originalmente publicada no site Lume Scope.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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