Crítica | Festival

Saudade Mundão

(Saudade Mundão, BRA, 2019)

  • Gênero: Documentário
  • Direção: Julia Hannud, Catharina Scarpellini
  • Roteiro: Julia Hannud, Catharina Scarpellini, Renato Maia
  • Duração: 89 minutos
  • Nota:

A mulher no cárcere. Essa dinâmica já foi explorada de maneira alegórica em Torre das Donzelas, sobre aquelas que foram presas políticas e torturadas e em A Rua e o Cárcere, um olhar em especial debruçado sobre os ombros das mulheres que são mães na prisão, que tem que lidar com a ausência dos filhos enquanto estão aprisionadas ou com a difícil travessia de volta para casa e o convívio. Saudades Mundão usa o dispositivo das multivozes e constrói num filme coral sentimentos de cinco mulheres frustradas e iludidas: elas tentam fazer daquele mundinho acinzentado de muros altos a última fortaleza de felicidade.

Um dado deprimente – o aumento de 455% em 15 anos da população carcerária feminina do Brasil – dá conta do tamanho da chagas social. A maioria negras, a maioria com pouca escolaridade, a maioria mães ainda bem jovens. Essas vozes ecoam pelos compartimentos da prisão em São Paulo, por pátios, celas e corredores. Algumas cheias de mágoa pelo abandono de ex-companheiros, outras dotadas de uma fé amolada como Elisabette. Paciente, ela caminha com dificuldade com o corpo meio obeso (emagreceu mais de 80kg) mas o peso maior é o da saudade do marido e dos filhos. O filho vendia drogas, era menor e ela foi presa por aliciamento e associação criminosa. “Foi perda no 157 mas eu não tive culpa. Tava no lugar errado na hora errada e os cara já me queria, né?” – a fala é de Léia, tatuagem de diamante no rosto, que se apresenta como traficante e está na sétima temporada na cadeia.

Saudade Mundão

Cruzando os depoimentos em talking heads das personagens destacadas, as cineastas e roteiristas Júlia Hannud e Catharina Scarpellini, bebem na fonte do cinema direto de Wiseman – se afastando de experiências mais desafiadoras como O Prisioneiro da Grade Ferro -, ainda que humanizado, incluindo a captura num formato mais caseiro momentos de soltura; de desenvoltura e intimidade entre as presas – quando concedem a condução do aparato para as mesmas, que registram umas às outras no pêndulo entre prisão e liberdade.

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Podia soar como um recurso óbvio, mas a singularidade na forma como as cenas de Saudade Mundão se sucedem – entre o público e o privado, trazendo uma noção adorniana de indivíduo como aquele que adquire consciência sobre si no íntimo – dá uma leveza à narrativa. E com isso, a temática que poderia provocar bocejos ou tédio – como diz Miguel Falabella, na sua clássica despedida do Video Show, reproduzida em uma tv – se renova a partir da interação entre as partes e a sensibilidade daquelas que filmam. As detentas, em sua maioria, se dizem inocentes e vítimas de outros, de serem bodes expiatórios, assumirem a culpa e pagarem pelo crime cometido por terceiros. Por homens em sua maioria. Aqueles que mais as amavam as entregam de bandeja para serem deglutidas por um sistema patriarcal moedor de mulheres vulneráveis. Ou elas ou eles. Porque é aquela velha máxima, cantada por Mano Brown em uma clássica canção dos Racionais MC: “Será instinto ou consciência viver entre o sonho e a merda da sobrevivência”.

Saudade Mundão

Pra Nina, usuária de crack que quer ser rapper e manda umas rimas para as parceiras depois de jogar uma bola, o desafio é sobreviver a depressão na clausura decorrente do sofrimento de ficar sem a droga – e o que dá mais dinheiro e barato do que a droga? É vida louca (“fazer o quê se o maluco não estudou 500 anos de Brasil e o Brasil aqui nada mudou”), fala vários números de processo como ré confessa, praticando crimes desde os 12 anos de idade e não enxerga mudança ou maneira de sair desse vórtice.

Júlia e Catharina observam como os cultos neopentecostais são parte vital na rotina das mulheres encarceradas, criando uma curiosa dicotomia quando uma delas agradece aos céus por ter uma visita íntima chegando. Afinal qual é a boia de salvação de tantas mulheres cis e trans, amontoadas no sistema prisional, num país que não criminaliza o feminicídio, não tem políticas antidrogas eficazes para combater o tráfico e na falta total de perspectivas, de prover ressocialização séria, alarga abismos sociais? Na seleção da competitiva do festival As Amazonas do Cinema, Saudade Mundão é mais um extrato do desalento dominante, acentuado pelas idiossincrasias das mulheres que puxam a narrativa, atrás das grades de ferro de onde podem até sair mas que metaforicamente nunca saíram de dentro do peito delas.

Um grande momento
O destino da ré passando máquina no cabelo.

[As Amazonas do Cinema]

Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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