Crítica | Festival

Kaepernick & America

Sem direito de se posicionar

(Kaepernick & America, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Ross Hockrow, Tommy Walker
  • Roteiro: Ross Hockrow, Tommy Walker
  • Duração: 82 minutos

Na temporada de 2016 da NFL, a liga estadunidense de futebol americano, um jogador chamou a atenção de todos ao não se levantar durante a execução do hino nacional do país. Era Colin Kaepernick, quarterback do 49ers, que não só repetiu seu gesto como tornou-o ainda mais explícito ajoelhando-se no mesmo momento em jogos seguintes. A imagem eternizou-se. O objetivo do jogador era protestar contra a brutalidade policial contra os negros nos Estados Unidos. O documentário Kaepernick & America conta toda a história, desde o surgimento do atleta, sua intimidade familiar e contratação pelo time de San Francisco, até os efeitos de seu ato.

Especialista em documentários esportivos, Ross Hockrow se junta Tommy Walker, ganhador de Sundance com Pátria Proibida e produtor de vários outros títulos, e faz um apanhado de material de arquivo, com imagens domésticas e jornalísticas, mesclando o particular e o público para tentar alcançar a persona de Kaepernick. Ao material acrescentam entrevistas feitas especialmente para o filme de April Dinwoodie, Don Lemon e Steve Wyche, entre outros.

O que se vê não é exatamente original na forma, é mais um documentário biográfico padrão que tem um evento e que explora a personalidade por trás dele, mas vale cada segundo por expor aquilo que precisa ser visto e revisto, trazer à tona o racismo. Não só aquele contra o qual Kaepernick luta explicitamente, mas o que passa a ser vítima. Kaepernick & America vai expondo as reações ao ato do jogador e deixando evidente a intolerância de uma sociedade branca doente que só precisa de um motivo para odiar pretos. É como se eles tivessem lugares de existência muito específicos, que jamais pudessem sem ultrapassados.

Apoie o Cenas

Ver uma mulher vociferando na TV que Kaepernick não merecia ter tido a família que tem, ou assistir a um vídeo que mostra o rosto do atleta transformado em alvo para treino de tiros e lançamento bombas demonstra que para aquelas pessoas ele ultrapassou a fronteira de um espaço benevolente que lhe foi concedido. Ele podia correr muitas jardas, fazer touchdowns. Era isso. Como ousou pensar, falar e se posicionar? Essa sociedade que certamente define papéis, espaços e limita liberdades vai ficando cada vez mais evidente a medida que o filme avança e os diretores começam a mesclar propositalmente o efeito Kaepernick a outros fatos igualmente relevantes, muito mais óbvios.

E do racismo velado, disfarçado de ufanismo, Kaepernick & America irrompe em dois caminhos, ambos intrinsecamente ligados: a legitimação do discurso supremacista branco com a eleição de Donald Trump, e o cerne dos protestos contra a violência policial em campo, com os assassinatos de Chuck Jordan e George Floyd. É nesse momento de resposta que o filme atinge o seu ponto de maior força, com as manifestações do Black Lives Matter e o gesto-símbolo tomando ruas, quadras e estádios no país e no mundo.

De tudo, hoje se sabe, pequenos passos foram dados, mas muito mesmo falta para se chegar ao mínimo. O policial que assassinou George Floyd foi condenado, porém negros seguem sendo mortos e tendo seus direitos violados diariamente pela polícia; Kaepernick segue sem poder jogar desde 2017 porque nenhum time tem interesse em contratá-lo; e o nazi-fascismo e o nacionalismo estão aí esperando qualquer espaço para se encaixar. É preciso que muita coisa se mostre e se faça explícita para que as coisas efetivamente mudem de verdade. Kaepernick & America pode ajudar um pouco com isso. Que seja visto por muitos. 

Um grande momento
Agora você entende?

[Tribeca Film Festival 2022]

Curte as coberturas do Cenas? Apoie o site!

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo