Crítica | Festival

Liberdade em Chamas

Horror ininterrupto

(Freedom on Fire: Ukraine's Fight for Freedom, UCR, EUA, RUN, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Evgeny Afineevsky
  • Duração: 111 minutos

A primeira cena de Liberdade em Chamas – em cartaz na 28ª edição do Festival É Tudo Verdade – tenta preparar o público para algo suspeito, de tratamento subterrâneo. Um grupo de pessoas avança por espaços cada vez mais apertados, em busca de uma brecha que parece distante de chegar. Escadas, compartimentos, tudo muito rápido, mas que coloca o espectador já em suspenso. De repente, um palco improvisado, um microfone, e estamos diante de uma apresentação de comédia ‘stand-up’, sim, em meio à guerra da Ucrânia. Não precisa de maiores explicações para o exercício: mesmo em meio ao horror (e talvez principalmente em meio a ele), o ser humano precisa de motivação para acessar a esperança, tão em falta ali. É um ponto de partida que poderia estar mais presente, mas que vende bem sua ideia de construção.

Dirigido pelo mesmo Evgeny Afineevsky que foi indicado ao Oscar por Winter on Fire, esse aqui vai resgatar o estado da Ucrânia dos últimos anos, até literalmente dois meses atrás. Não reencontramos os personagens que no anterior estiveram, mas estamos diante da mesma narrativa, aqui mais detalhada, cujo didatismo não dissolve seus valores cinematográficos. Existe até mesmo uma abertura animada que nos coloca a par da situação envolvendo a Rússia ao longo da História, até a eclosão da independência do país, que vem sendo ameaçada pelo governo de Vladimir Putin. Sem a estrutura cênica empobrecida de Navalny, o filme alça voo mais efetivo através de imagens extraídas de um filme de terror da vida real, capturadas por quem está na linha de frente da ação; assim como lá, aqui também assistimos o que as fake news fazem de trágico. 

Isso confere a Liberdade em Chamas a continuidade dessa urgência por toda a duração, e não apenas naquele ponto inicial. Independente do filme também contar com o esquema de entrevistas, o diretor consegue ir muito além desse estágio básico de documentário porque entende sobre o quê está falando e qual a sua posição no “set” – entregar o que pode ser de mais cru para o entendimento do conflito. Essa crueza não é conseguida às custas do sofrimento alheio, pelo contrário, ela é parte integrante de um estado de coisas predatório que arranca qualquer humanidade que se imagine de um povo, assolando-o ao sofrimento ininterrupto. Sem promover estardalhaço estético, o filme literalmente leva o espectador para a zona de combate. 

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Isso nos leva a pensar o quanto de exploratório poderia existir nessa intenção, de filmar a guerra, e não privar o espectador de uma experiência que, na verdade, não deveria ser espetacularizada. A intenção de fato não creio ter, mas isso corre alheio ao tratamento escolhido para envolver o produto, que é, a rigor, um filme sim. Quando o espectador pula na cadeira, vibra com heróis sobre vilões (e cada um escolhe quem são quem, o filme te dá esse direito, embora seja obviamente pró-Ucrânia), tenta fugir de balas imaginárias, Liberdade em Chamas se aproxima do espetáculo. A sensação é a de que aproxima nossa experiência da que experimentamos em 1917 e Nada de Novo no Front, que embora também retratem guerras reais, são imagens ficcionais; se isso tira o véu do filme enquanto documentário, também o coloca também em condição do épico. 

Para o outro lado, Liberdade em Chamas contempla a criação de diálogos/monólogos muito pungentes, que transformam nossa relação com a obra. “Vó, você precisa sobreviver” é um desses momentos, onde a emoção é também embutida de aflição e transtorno, motivando toda a sequência na direção do Cinema. Outra grande frase é quando uma das testemunhas oculares declara que “aparentemente estamos no século 21”, denotando um grau de ironia dentro do mais absoluto caos, que também cinematografiza o todo. Mas como criar um campo de aspecto dentro dessa máquina de guerra sem se colocar em um lugar de igualmente vestir um lugar de exploração? Talvez sendo sensível aos seus personagens, e seu diretor o é. 

Capturando graus de humanidade dos escombros de imagens, sem explorar o horror gráfico, mas montando uma realidade que também agregue suas complexidades. Como o pranto de uma jovem abraçada ao pai, onde segundos antes a câmera filmou suas unhas muito bem feitas. Ou o soldado amputado que vende um militarismo ainda fervilhante em si, mesmo que hoje lhe falte um membro. Liberdade em Chamas pode até nos colocar com frequência no olho do furacão e não dar espaço para as contradições existentes dentro da própria Ucrânia, mas quando filma suas crianças, seus bebês e seus rasgos de imperfeição, mostra qual o melhor lado do que poderia tratar na tela grande. 

Um grande momento
Fugindo para baixo da ponte 

[28º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentário]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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