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O Homem do Norte

Sob o constante vermelho

(The Northman, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Aventura
  • Direção: Robert Eggers
  • Roteiro: Sjón, Robert Eggers
  • Elenco: Alexander Skarsgard, Nicole Kidman, Anya Taylor-Joy, Claes Bang, Ethan Hawke, Willem Dafoe, Gustav Lindh, Elliott Rose, Oscar Novak, Eldar Skar, Ingvar Sigurdsson, Björk
  • Duração: 137 minutos

Não demora para que uma das características marcantes de O Homem do Norte se materialize para o espectador. Em qualquer que seja a ocasião, sua simetria estética é responsável por alguns dos planos mais geometricamente elaborados da temporada. A proposta em cena é arriscada, mas sua realização é exemplar: nada do que é visto não obteve o máximo em construção e preparação em decupagem e posteriormente, na mise-en-scène propriamente dita. O trabalho é tão fotográfico em sua exatidão que em determinados momentos, há a impressão de que a emoção e uma certa energia provocada pelo caos não fazem falta. Mas não estamos falando de um filme qualquer dirigido por um cineasta qualquer, mas de Robert Eggers, o homem que está fazendo desse milimétrico jogo cênico um esporte em que ele domina sua técnica, e faz dela o que bem quer.

Após A Bruxa e O Farol, observamos em sua nova produção uma necessidade de desfazer impressões quanto ao que poderia ser acusado de comodismo. Não haveria qualquer necessidade dessa preocupação, no entanto; Eggers não bebe do cinema de gênero/fantástico como uma obrigação contratual, nunca deixando de imprimir um viés onde sua assinatura tivesse outra opção que não o posicionasse como artista. Ok, não estamos tirando esse verbete de sua definição, mas o jovem cineasta quer, em seu ofício, provocar mais do que emoções baratas, embora também o queira. Pode ser fácil taxar Eggers de pretensioso, o que de fato ele é, mas essa pretensão nunca deixa de corresponder com fidelidade ao que se pretende – Cinema, e também uma autoralidade ímpar, que o coloque em paralelo aos demais autores, mas nunca longe dos mesmos. 

O Homem do Norte
Aidan Monaghan/Focus Features

Sua colaboração com Jarin Blascke continua sendo das melhores duplas “diretor-fotógrafo” da atualidade. Ambos encampam momentos muito complexos, de profundidade de campo, da relação entre os planos a respeito de sua continuidade, da forma como as sequências evoluem para um lugar exploratório do seu campo de ação, que fica difícil encontrar qualquer mínimo motivo para desaprovar. São praticamente 2 horas e 15 onde a câmera sempre captura a melhor luz, muitas vezes absolutamente natural sem qualquer ingerência artificial. Entre a composição das sequência em movimento, sem cortes, não há outra coisa a fazer que não tentar procurar defeitos, e falhar miseravelmente na tentativa. 

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Um detalhe dessa combinação, que une também o trabalho de figurino e direção de arte, é da aplicação do vermelho como agente de manutenção narrativa. Da capa que o protagonista veste ao abrir o filme, ao manto que ainda o mesmo usa em sua tentativa de fuga, passando pelo fogo rubro incandescente que desce a montanha ou resvala numa roda de dança, o protagonista Amleth e seus coadjuvantes estão a todo momento cercados pela ameaça do sangue derramado. Ainda que seja um intuito a morte em combate, o filme não deixa de representar metaforicamente que essa mesma morte pode aparecer a qualquer momento, vinda de qualquer lado – o vermelho em sua constância aparição não nos deixa esquecer ao que todos estão condenados, efetivamente.  

O Homem do Norte
Aidan Monaghan/Focus Features

O preciosismo de Eggers talvez até atrapalhe na fruição da narrativa, e a relação que o cineasta provavelmente estabeleceu com a primeira vez que trabalhou com uma major (no caso, a Universal) arranha o resultado em O Homem do Norte, porque a narrativa precisa de uma agilidade que o próprio filme não parece muito à vontade para bancar. De início contemplativo e absolutamente integrado ao modus operandi do autor, uma trama de vingança precisa ser engatilhada, e o filme perde sua capacidade de refletir suas imagens. Não entra numa zona depreciativa, mas é plenamente perceptível sua quebra de orientação rumo ao desfecho. Em uma tentativa de angariar um público que também possa encarar o longa sob o ponto de vista do feérico, a produção abraça um ritmo deslocado com o resto da narrativa. 

O filme é uma fantasia viking, um delírio romântico de Eggers e seu protagonista, Alexander Skarsgard, que têm o universo como um período de sonho; ele também ter produzido o filme deixa clara sua devoção ao material. O diretor claramente corrobora essa paixão, ao estabelecer um contato muito verdadeiro com sua fonte inspiradora, a mitologia nórdica, e tentar fidelizar o público a esse mundo tão erroneamente explorado pelo cinema. O diretor se utiliza dos códigos dessa seara literária com muito respeito, à língua, ao sentimento dominante entre os personagens, até a uma certa masculinidade tóxica resvalada na misoginia que era amplamente naturalizada por essa cultura tão antiquada. Ciente dessas questões, o roteiro de Eggers e Sjón (baseado em uma lenda que inspirou Shakespeare a criar “Hamlet”) amplia suas duas protagonistas femininas à condição de agentes de ação, dando voz e autoridade a ambas.

O Homem do Norte
Aidan Monaghan/Focus Features

Como em seus longas anteriores, Eggers inclusive escolhe resvalar em uma espécie de comicidade constrangida que cabe em absoluto em O Homem do Norte, justamente em momentos cruciais dessas extremidades masculinas; a sequência do batismo bestial infantil é um exemplo. Isso não tira do longa sua carga assustadora em determinados pontos, mas seu diretor nunca se coloca de maneira defensiva a esses acontecimentos, e provocar o ridículo deles é uma saída acertada. É um período ultrapassado, mas que existiu e não havia outra maneira de ser fiel ao período sem investigar o horror masculino, que ainda hoje é refletido em comportamentos hediondos. 

Esse ar cômico presente pontualmente na narrativa aguça outra grande questão masculina jamais superada: o homem nasce criança, vive criança e morre criança. Infantilizado em suas próprias ideias de poder a respeito de situações muitas vezes abstratas, seu desenho comportamental remete eternamente a uma ausência de maturidade que se traduz em um desejo absurdo por conquistar o impossível, seguidas vezes. Atingir metas inenarráveis, ultrapassar sempre novas barreiras e tomar controle a respeito do que não está ao seu alcance são tarefas masculinas por excelência, que Eggers vez por outra zomba. Ele filma a crença nesses dogmas que nunca serviram para nada, filma a paixão pelo qual esses homens constantemente acabavam destruídos, mas nunca deixa de observar o quão ridícula sua teimosia pode ser, em detrimento ao racional. 

Um grande momento
Vários, diversos, incontáveis – porém, o encontro com a bruxa (Deus salve Björk!)

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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