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Marcel, a Concha de Sapatos

Reflexões de uma conchinha

(Marcel The Shell with Shoes on, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Animação
  • Direção: Dean Fleischer Camp
  • Roteiro: Dean Fleischer Camp, Jenny Slate, Nick Paley
  • Elenco: Jenny Slate, Dean Fleischer Camp, Isabella Rossellini
  • Duração: 85 minutos

Muitas polêmicas extra-filme nos chegaram sobre Marcel, a Concha de Sapatos antes mesmo de assistir ao filme, e isso demorou a nos ser possível, já que só agora ele estreou no Telecine, um ano depois dos cinemas estadunidenses. Indicado ao Oscar de animação do ano, foi questionado por muitos ao estar nessa categoria; por ser um título da A24, suas qualidades também são relativizadas; por estar dentro de uma seara ‘indie’, o filme também foi apontado pelos detratores. Todas essas coisas são uma baita besteira de quem está mais interessado em acusar de maneira vazia produções de sucesso, do que existem argumentos aí para tais reclamações. O que poderia ter sido usado contra a produção, é de origem mais subjetiva e bem mais interessante para o debate. 

Baseado em uma série de esquetes produzidas para o youtube pelo seu diretor Dean Fleischer Camp sobre o mesmo pequenino protagonista, Marcel, a Concha de Sapatos é uma incursão surrealista do universo da animação que deveria fazer concessões a sua linguagem. Ledo engano, porque Camp não pretende paternalizar o espectador dando aos anseios de seu protagonista um viés envolto na concretude; seu interesse é, através até de uma aura lúdica, dimensionar questões observacionais de perda e da constatação acerca de um lugar no mundo do indivíduo. Tudo isso sendo verbalizado (ou em alguma tentativa) por uma criatura diminuta em entrevista feita pelo próprio diretor, que avança sobre ele sem extirpar sua individualidade. 

É uma tarefa árdua a do cinema que Camp pretende apresentar, porque vivemos em um tempo do imediatismo, onde cada momento é definidor de nossa atenção e pode ser crucial para o envolvimento do espectador. Marcel, a Concha de Sapatos conta com a adesão do espectador ao carisma muito particular do personagem-título, que literalmente não pede amor, mas talvez entendimento. Enquanto ser vivente, tudo o que ele necessita é de alguma forma tão banal para a nossa compreensão que nos debruçamos na sua direção sem nos preocuparmos com sua forma. Mas não é uma adesão fácil, por seu visual único e por seu ritmo narrativo incomum, e é aí que reside grande parte da ousadia de seu diretor. Ainda que animações adultas, com ritmo particular e filosóficas não sejam inéditas (Anomalisa e Mary & Max, só pra citar duas óbvias), seu compasso é singular. 

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Porque estamos falando de um filme cuja matéria-prima é de uma amostragem, digamos, algo infantilizada, e que nos tira a cadeira quando nos inteiramos da intenção de sua realização, que é mais interiorizada do que a aparência suporia. E mesmo nessa espécie de ‘falso documentário’ que é seu revestimento, tentando abordar Marcel com certa seriedade dentro de seu espaço cênico, o filme tira nossas defesas e não acrescenta conforto. São muitos riscos cujos cálculos são feitos de maneira igualmente sem proteção, jogando o espectador em uma zona desconhecida. Que a isso seja acrescido algumas porções de filosofia e um conceito de busca humana muito verdadeira, é onde Marcel, a Concha de Sapatos conquista o espectador – ou o perde de vez. 

No meio de sua singeleza, o que mais está em pauta então em Marcel, a Concha de Sapatos não são apenas as reflexões de seu protagonista, mas o tanto de coragem que é empregado em sua forma. Enquanto apresentação de produto, o que Camp constrói com a ajuda de sua ex-mulher Jenny Slate é uma fábula agridoce sobre auto aceitação, e busca contínua por novas motivações. Com a dublagem inspirada de Slate, Marcel é um reflexo de tantas outras jornadas, que não se imaginariam como uma pequena concha, mas cujos desejos são reconhecíveis por qualquer um. Resta apenas vencer as barreiras de um invólucro que desafia o formato e entrega um olhar raro para suas muitas propostas; nem como animação, nem como ficção, raramente foi visto algo como essa estreia. O preço que se paga pela inovação nem sempre é um caminho tranquilo. 

Um grande momento

A apresentação da avó

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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