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Apocalipse nos Trópicos

A fé manipulada

O evangelismo no Brasil deixou de ser movimento periférico para se tornar uma das forças religiosas mais influentes do país. Hoje, segundo o último censo, quase um terço da população brasileira se declara evangélica, com crescimento especialmente rápido das igrejas neopentecostais. O avanço não diz respeito só ao campo da fé, ele se tornou instrumento político, com lideranças que se projetam a partir da mobilização religiosa para ocupar espaço nas decisões de Estado. Antes de ser julgada, essa força precisa ser compreendida.

É aí que entra o documentário Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa. No filme ela tenta buscar quem use a crença como ponte para o poder, mas sem ignorar que existem milhões de fiéis, manipulados ou não, que se movem por alegorias ancestrais e promessas de transformação. Tentando entender essa dinâmica, o longa segue a mesma linha de Democracia em Vertigem, não apenas pela assinatura diretora, mas pelo método. Ele busca indivíduos em diferentes frentes, ampliando o foco agora para a religião e suas figuras centrais.

Aqui, Petra faz um paralelo entre o quadro atual e o apocalipse bíblico, destacando a lógica de divisão do mundo entre o bem e o mal, a construção de inimigos e a promessa de retribuição divina. Essa narrativa, disseminada pela atual oposição, funciona como combustível político e espiritual. Em oposição à retórica divina e caótica, está o modernismo bruto de Brasília, cidade projetada e desenhada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. O concreto e o cartesiano são contrapostos à estética da iminência do fim. O contraste entre as imagens de arquivo da cidade e a coletânea de pinturas clássicas reforça a mensagem. A intenção é que essas duas narrativas — a da razão e a do sagrado — se choquem. Porém, o filme nem sempre mantém essa distância crítica.

Silas Malafaia, uma das figuras mais proeminentes do movimento neopentecostal, ganha atenção especial. Pastor, empresário da fé e articulador político, ele surge como personagem central. No entanto, por vezes, o tempo de tela de um personagem em um documentário tem um efeito diferente daquele esperado, e não é difícil que a crítica vire propaganda. Em alguns momentos, a força retórica e a imagem comum de Malafaia se impõem mais do que a análise que o filme tenta construir, desviando o foco e diminuindo a contundência do argumento.

Ao lado dele, está o escolhido como peça-chave de poder, alguém que foi moldado para estar naquele lugar, fazendo aquilo que dele esperam. Bolsonaro, embora tenha se aproveitado da situação, surge aqui como criatura manipulada, o que dá à imagem um ar estranho, quase condescendente.

Outra questão incômoda é a falta de espaço para mostrar o outro lado do evangelismo, pois existe todo um ramo evangélico pentecostal que combate a manipulação política e a instrumentalização da fé. Essa quase ausência abre margem para um certo preconceito com a religião, o que não parece ser o objetivo da diretora e nem deveria ser o de quem se propõe a compreender o fenômeno.

O filme, portanto, acaba se perdendo nas intenções, ao querer falar de muitas coisas e muitos elementos, sem equilibrar sua atenção. Funciona muito melhor quando mantém o foco na instrumentalização da fé e na manipulação dos fiéis. Aí está o núcleo do problema e não na crença ou no senso de pertencimento que vêm da religião e das igrejas.

Pensando em estilo e estética, a narração, marca dos filmes ultrapersonalistas de Petra Costa, está presente aqui. Além disso, Apocalipse nos Trópicos não deixa de ser um relato de Petra sobre como ela, para fazer o filme, se aproximou do cristianismo e da onda neopentecostal. Mais do que trazer a sua visão do quadro – e, em um documentário, sempre é a visão do documentarista –, ela precisa falar dela no quadro. Essa escolha confere unidade, mas a repetição de cadência e o tom constante da narração acabam tornando-a cansativa em alguns trechos.

Apocalipse nos Trópicos poderia ser mais incisivo se fosse mais específico. Teve acesso a um dos mais importantes articuladores da politização da fé evangélica e não soube como se aproveitar dessa oportunidade. Ainda assim, é um trabalho importante, porque a realidade que mostra merece atenção. É preciso entender o que aconteceu para que homens com agendas de ódio e morte se tornassem favoritos de multidões que acreditam naquele que sempre pregou o amor. Por que, mesmo diante de crimes, revelações e malefícios, eles continuam sendo escolhidos? E como isso se repete? São perguntas que o filme, mesmo com suas falhas, traz à tona.

Um grande momento
Ruínas

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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