Crítica | Festival

Sessão Bruta

Imagens que rasgam sem pedir licença

(Sessão Bruta, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Experimental
  • Direção: As Talavistas e ela.ltda
  • Roteiro: As Talavistas e ela.ltda
  • Elenco: Cafézin, Darlene Valentim, Duca Caldeira, Dyony Moura, Yunni, Marli Ferreira, Pink Molotov, Vidrynha, Ventura Profana, Podeserdesligado, Wendy Loiola, Ismael Moraes, Victor Seixas
  • Duração: 84 minutos

Um ano depois de Pietá surgir na Mostra Tiradentes, um novo acontecimento vindo das mãos de Pink Molotov, As Talavistas e ela.ltda (produtorxs do curta do ano passado) chega na competição da Aurora, recebido com a estranheza esperada. Não tem como ser diferente, já que o cinema brasileiro, mesmo aquele acostumado com Tiradentes e com sua proposta arrojada, ainda engatinha pra entender o que um tanto de representatividade trava, preta e periférica é necessária para oxigenar um padrão de coisas longe do aceitável – ainda que dentro de um festival com produção menos centralizada e de abertura reconhecida.

Não tem a ver, contudo, especificamente com um discurso – não somente, e se fosse somente, Sessão Bruta já teria um lugar de destaque dentro do status quo. O que é conseguido em matéria de textura imagética, de adorno narrativo e de presença estética não se consegue em qualquer título, em qualquer lugar. Há um pensamento cinematográfico que não deixa o título passar como uma colcha de retalhos esgarçada, vide o momento em que “Broken Hearted Girl” é cantada e o filme revela suas curvas de cinema. Não importa se esse tipo de quadra de quarta parede não é necessariamente original, ou se o filme já apostava em experimentação narrativa até ali – a escolha pelo abraço ao bastidor dá ao filme consciência, e adiciona autoralidade àquele grupo.

A discussão em torno do que elas realizam enquanto criadoras de cinema é a mais pertinente, porque é a que vai tentar deslegitimar suas vozes enquanto forças criadoras. E, na minha opinião, essas são vozes muito mais necessárias que a de uma “mulher branca que teria passe livre em festivais europeus”, porque são os corpos que vivem e representam essa performatividade todos os dias, que abriram mão de privilégios em nome de uma postura diante da existência. Que essas vozes não queiram ser resumidas a uma estrutura clássica de projeto, a um roteiro horizontal de acontecimentos previsíveis, a uma lógica de mercado que já cospe na sua cara, não é apenas corajoso, como acertado e lógico, diante de seu discurso.

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E é esse discurso que, no fim das contas, resplandece o caminho que elas escolhem fazer na frente das câmeras, com suas breves histórias sendo contadas de maneira deliciosamente esquizofrênicas, enquanto realizam suas performances e demonstram os lugares que escolheram ocupar, a forma como esses lugares são efetivamente mostrados e construídos por suas principais interessadas é completamente de outra ordem. Tem um momento de Sesssão Bruta, que dura mais de 10 minutos, onde seus desejos, frustrações, metas e disposições são colocadas pra fora como a um vômito, clamando por um lugar possível – não é aceitação, não é espaço físico, mas sim respeito e representatividade.

São corpos que não tem preocupação com um histórico de padronagem, nem precisa calçar uma postura para essa situação. O embate visual que uma figura travesti preta e periférica precisa alcançar, que é a de entender que não há um lugar pra essa performatividade que não seja arrancado por elas próprias, constitui em imensa força vital para um projeto que, de tantos riscos que escolheu correr, obviamente tropeça em diversos excessos, como a da própria duração, que por vezes se dedica a não aparar arestas que, talvez, não quiseram ser aparadas. E tá tudo bem enquanto discurso, mas que isso aí dilui um pouco de sua força.

Mas existe um outro código de discussão, que é o quanto esse mesmo projeto, com suas gordurinhas e entraves, ainda assim avança pelo terreno da dialética para se mostrar efetivo na criação de sua atmosfera, que obviamente encontra o discurso e preenche cada lacuna da produção com explosão sintomática de uma nova forma de pensar o cinema, que já vinha sendo aventada em curtas já emblemáticos (Negrum3, Bonde, Perifericu, entre outros) e que agora exige sua legitimação em formato longo. Que sejam bem vindas todas essas vozes apagadas e seu poder comunicativo em linguagem cinematográfica.

Um grande momento
“Broken Hearted Girl”

[25ª Mostra de Cinema de Tiradentes]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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