Crítica | Festival

Mayday

Natasha na ilha do feminismo

(Mayday, EUA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Fantasia
  • Direção: Karen Cinorre
  • Roteiro: Karen Cinorre
  • Elenco: Grace Van Patten, Mia Goth, Havana Rose Liu, Soko, Juliette Lewis, Théodore Pellerin, Zlatko Buric, Frano Maskovic, Nathaniel Allen, Hyoie O'Grady
  • Duração: 100 minutos

Um casamento está prestes a acontecer. A diretora Karen Cinorre opta por uma artificialidade, o choque entre o indie e o onírico no exterior e o interior marcado por uma determinação temporal esquisita, com cenário marcado por cores fortes e personagens deslocados. Tudo está em construção, assim como a própria festa, e os elementos vão se apresentando aos poucos, apresentando a questão principal do filme: o espaço das mulheres, seu lugar naquele ambiente, sua liberdade de escolha, seu próprio corpo. Mayday é o sinal utilizado internacionalmente para pedir ajuda por radiotelefonia, e o grito da realizadora e forma de filme para deixar esse lugar, ou pelo menos tenta ser.

Mayday se apropria de histórias clássicas para encontrar meios de superar esses traumas sofridos há séculos por todas as mulheres. O faz do meio mais doloroso, com a mais grave das atrocidades, a violação do corpo. A cena tem o poder de universalizar o sentimento do ato, quando faz com que todos saibam exatamente o que acontece sem exibir qualquer elemento da violência. Isso é o bastante para mostrar o quanto é cruel ser mulher nesse mundo. Daquele refrigerador sai a personagem que acompanhamos por todo o filme, Natasha, em seu trajeto de cura.

Uma cura que vem pela solidariedade, ou pela sororidade, melhor dizendo, pelo encontro com outras mulheres e com outras realidades igualmente difíceis e terríveis como a dela. Transportada para um universo fantástico, ao estilo de “O Mágico de Oz” e “Alice no País das Maravilhas”, Natasha descobre a existência de uma outra realidade. Cinorre, com a ajuda de Vjeran Cengic (direção de arte) e Branka Radonic (cenografia) cria um ambiente que mescla o natural e o lúdico, abrindo espaço para o resgate de lendas e referências variadas.

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Mayday literalmente volta as costas ao mundo dos homens quando divide o mesmo espaço físico com uma guerra e coloca, em um primeiro momento, os que chegam para a guerra e Natasha cara a cara. Nesse mesmo ambiente se refugia, cria o seu oásis seguro, sua Terra do Nunca do feminismo em mais uma referência a outro clássico infantil. Dali, se vingavam desses mesmos homens em guerra, onde, como as sereias, atraiam suas embarcações para que se afogassem ou, em outros momentos, de quem riam em números musicais inusitados.

Em todo o processo, há uma valorização muito grande de elementos sabidamente femininos, como a própria natureza. O local e a relação das personagens com o ambiente são destacados pela fotografia de Sam Levy e o roteiro faz questão de trazer aos diálogos a importância dessa aproximação. Outra citação de Mayday pode estar no nome e na simbologia das personagens, Gertrudes, a escritora e poetisa estadunidense; Beatriz, aquela que conduz Dante no paraíso terrestre, e Juno, a deusa de todos os deuses. Porém, dentre todas as referências, a obra de L. Frank Baum que se destaca. 

Da obra literária, aquele universo do caminho de tijolos amarelos governado por mulheres e onde os homens são falsos líderes, Cinorre toma como inspiração a estrutura e a repetição de personagens que reaparecem dentro e fora do delírio de Natasha. É de lá que captura o tom de suspense. Contraditoriamente, ou não, é quando deixa que os homens tomem espaço na narrativa que começa a se perder. Seja ao dar lugar ao vilão e à esperada vingança de sua protagonista ou quando cede ao trivial do conflito e do encontro necessário, sem deixar de lado a trilha sonora equivocada.

O final de Mayday é frustrante por tudo o que o filme construiu até ali. Tudo funciona muito bem enquanto determina a união e a natureza como meios de cura, destacando a importância da rede de apoio como uma forma de reconhecer e enfrentar o racismo, mas é algo que não se mantém e acaba se perdendo no deslumbre. Fica a mensagem, mas fica também o vazio da inexistência da efetividade. Dorothy vê a verdade e descobre, com o amadurecimento, que não há lugar como a nossa casa. A ideia de Cinorre era mostrar que não há lugar como o feminismo, mas sua Natasha volta para casa, e esta casa, com ou sem feminismo, ainda é a mesma, e a porta do refrigerador ainda não abre por dentro.

Um grande momento
“Eu morri?”

[Sundance Film Festiva 2021]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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