- Gênero: Documentário
- Direção: Alexandre Rocha, Marcelo Pedrazzi, Tuco
- Roteiro: Marcelo Migliaccio, Marcelo Pedrazzi, Fernanda Dannermann, Leonardo Menezes
- Duração: 86 minutos
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“Não sei o que vocês vão fazer comigo. Com esses 80 anos. São tantas coisas, cara!”
Dá um aperto no peito ver Flávio Migliaccio de costas, ao longe, no início do documentário em sua homenagem que chega agora aos cinemas. Acessando um lugar muito pessoal, ele, que fez parte do que trouxe alegria à minha infância com tio Maneco, não suportou a tristeza de um país que se rendeu ao obscurantismo, ao negacionismo e ao mal que nos trouxe ao ponto em que estamos hoje. Dolorido demais. Porém, há um desacerto temporal com o longa, se eu e outros espectadores chegamos até aqui conhecendo a sua tristeza, aquele Flávio que fala, para um filme que vai celebrar seus 80 anos, está em um outro tempo, ainda sem ideia do que acontecerá ao país.
É o que transforma toda a experiência. Migliaccio – O Brasileiro em Cena vai romper com aquela tristeza que existiria de qualquer maneira, mas não tem nada a ver com a intenção do projeto. Dirigido por Alexandre Rocha, Marcelo Pedrazzi e João Mariano, o filme reúne fotos do arquivo pessoal, trechos de trabalhos do ator e entrevistas resgatadas e atuais sobre vida pessoal, arte e política. Por 86 minutos somos guiados pela história daquele homem, que se confunde com a história do próprio cinema brasileiro e é uma delícia.
O filme tenta seguir uma ordem cronológica. Parte da infância do ator, no subúrbio de São Paulo com seus 11 irmãos, o primeiro sapato engraxado e a péssima experiência no internato que acabou o levando aos palcos, ainda adolescente. Há muito carinho no modo como Flávio fala de seus pais, dessa convivência na casa cheia e das dificuldades que eles enfrentavam. Há também muita empolgação em como ele conta sua ligação com a arte. Ele esteve em todos os lugares: no Teatro de Arena, no surgimento do cinema novo, na invasão da UNE, na pornochanchada, nas telenovelas, no pouquíssimo prestigiado cinema infantil dos anos 1970, em seriados. Outras experiências, em outras funções, também são relembradas, como a direção de Os Mendigos que tinha que ser “mais barato que o 5x Favela“, sem imagens no longa porque está preso na Cinemateca pelo atual desgoverno.
No vaguear por suas lembranças, o ator emociona e faz rir, principalmente com os improvisos do cinema feito na raça dos primeiros anos. Histórias como a do roubo da bolsa ou a da barraca colorida do alemão são deliciosas. Flávio fala também da impossibilidade de viver apenas de cinema no Brasil e da necessidade de partir para outras searas, incluindo aí a televisão, teatro comercial e pornochanchada. “Eu nunca recusei um papel”, diz quando constata que fez tanta coisa boa quanto ruim, muita coisa que não gostou de fazer. É bom ouvi-lo falar sobre o ofício, sobre como ele enxerga a arte de interpretar, como percebe o mínimo e o máximo e até mesmo sua relação com a impossibilidade. Os diretores de Migliaccio – O Brasileiro em Cena,, envolvidos que são pelas palavras, nem sempre conseguem ilustrar o poder da fala de seu documentado, mas aqui fazem bonito na junção que vai do humor tosco ao drama choroso.
Assistir ao doc é estar sempre viajando entre as muitas presenças de Flávio em nossas vidas e descobrindo que sua importância para a arte era ainda maior do que a que julgávamos saber. Da menina que acompanhava Tio Maneco à adulta que ria com Seu Chalita, daquela que se impressionou com Quim, Naldinho e Edu àquela que se debulhou com Mamede, estar mais próxima traz um outro entendimento e outra experiência, ainda que muita coisa ali não seja inédita.
Boa parte do que se vê no filme, o ator já tinha contado na peça “Confissões de um Senhor de Idade”, escrita por ele. O documentário faz um trabalho interessante com essas “recontagens” na montagem. Peça, conversas e entrevistas chegam como recortes de uma vida firme e fundamental para a arte cênica. Migliaccio – O Brasileiro em Cena, além da homenagem e do caráter individual da experiência para quem a assiste, dá à arte brasileira a chance de se mostrar imensa na figura daquele que fez tanto por ela. No momento em que estamos, quando a cultura é tratada com desdém e sofre ataques diários, enquanto filmes derretem e os melhores desistem, a simplicidade de olhar para trás e encontrar tudo isso dá força. Mesmo que venha junto com a tristeza.
Um grande momento
O roubo da bolsa