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Jumpman

Onde há serventia

(Podbrosy, RUS, LTU, IRL, FRA, 2018)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Ivan I. Tverdovskiy
  • Roteiro: Ivan I. Tverdovskiy
  • Elenco: Anna Slyu, Denis Vlasenko, Daniil Steklov, Aleksandra Ursulyak, Vilma Kutaviciute, Pavel Chinaryov
  • Duração: 95 minutos

Sofra e faça sofrer, esse parece ser o lema não do protagonista, mas do longa Jumpman como um todo. Mais novo lançamento da plataforma Reserva Imovision, essa produção russa traça com certo distanciamento o caso de um pequeno órfão que cresce atribuindo dor a si mesmo até perder a capacidade de senti-la, até descobrir uma função real para esse “poder”. Aos poucos, mergulhamos no universo da própria Rússia hoje, um lugar fantasma e carente, através do que seu protagonista metaforiza – descartado ao nascer, aprende a não sofrer, criar uma casca protetora contra o mal que o persegue, até transbordar.

Dirigido pelo muito jovem Ivan I. Tverdovskiy, Jumpman – como grande parte da produção do país – tem muito a oferecer quando se olha para o contexto político e histórico de seu espaço; Denis é um adolescente que cresceu numa instituição em jogos que desafiam sua capacidade de impingir dor a si mesmo. Quando a mesma mãe que lhe tirou direitos reaparece com promessas de amor, não demora para o rapaz se perceber usado por todos que se aproximam; ele é um objeto de valor mutável, que só tem serventia enquanto realizar suas funções. De desvalido a material rentável, Denis perde gradativamente todas as capacidades emocionais adjacentes, em um painel de sobrevivência em ambiente de opressão.

Jumpman
Foto: Divulgação

A Rússia entra como o lugar a ser temido, que coloca no mundo seres indesejados para em seguida tratá-los como mercadoria do Estado, unido em torno de um bem comum corrupto – ou seja, comum só a quem detém o poder. Em uma primeira sequência de festa, temos a proporção da teia onde Denis é enredado; juízes, policiais, médicos, enfermeiros, advogados, o corpo de baile da sujeira se alastra por todos os cantos, e o personagem-título só serve para saltar, e todos os outros lucram às custas da base da pirâmide, que nasceu anestesiada. Não demora (na verdade, é no exato primeiro deslize) para que Denis seja informado da sua irrelevância, tratado de novo como um bem material substituível.

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As cores de Jumpman só deixam de atender a uma cartilha naturalista quando o protagonista é apresentado a tal figura materna, que vende uma realidade possível cheia de luzes ilusórias, e quando é envolvido pelo contingente maligno da produção, em sequências de comemoração regados a vermelho-sangue. A direção de fotografia de Denis Alarcón Ramírez impressiona não apenas por propor essas camadas, como principalmente em provocar um estado de torpor e tensão desde as primeiras cenas, ainda na instituição. Seja acompanhando o abandono de bebês em uma espécie de “roda dos enjeitados” moderna e ainda dolorosa, seja na trepidação que antecede a ação propriamente dita do personagem principal, Tverdovskiy e Ramirez provocam enjoo e repulsa com suas imagens.

Jumpman
Foto: Divulgação

Esse é um sentimento que perpassa Jumpman, o da certeza da falta de empatia entre todos os personagens e acaba sendo assimilado pelo protagonista, primeiro como meta de vida e depois como consequência desesperadora de seus atos. Há a solidão e o abandono, que é medida de diferentes formas em cada casta social apresentada – quanto mais superior, maior é a facilidade para descartar, ação que não provocará nenhum dano emocional a quem o realiza. Mas o filme não deixa de apontar que esse desprezo também é cometido por quem é desprezado – e quem disse que o oprimido não pode se tornar opressor?

Em uma das últimas passagens de Denis pelo mundo de ilusão que ele vive por algum tempo, antes de ver mais uma vez o caminho para a reciclagem se abrir na sua frente, ele ganha uma surpreendente carona de um personagem-chave. Durante o percurso, ele enfim tem um vislumbre da ramificação ainda maior do esquema onde esteve metido, uma engrenagem complexa de abuso de poder, exploração imobiliária e corrupção muito mais arraigada do que minimamente tinha conhecimento. Essa cena, que é o elo de ligação entre o Denis que enfim é descartado pelo mesmo e o retorno às raízes onde ele aceita pra si o destino de enfim voltar a se anestesiar, sintomatiza o intrincado caminho entre os soldados e os peões no tabuleiro de xadrez russo.

Um grande momento
A explosão de Denis

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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