- Gênero: Comédia
- Direção: Ruben Alves
- Roteiro: Elodie Namer, Ruben Alves, Cécilia Rouaud
- Elenco: Alexandre Wetter, Isabelle Nanty, Thibault de Montalembert, Pascale Arbillot, Stéfi Celma, Moussa Mansaly, Hedi Bouchenafa, Quentin Faure, Amanda Lear, Chantal Lauby
- Duração: 107 minutos
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Levemente paira sobre Miss França um aspecto que não está sendo particularizado a respeito das questões LGBTQIA+ nas produções cinematográficas, sendo essas discussões recentes ou não. O desejo do personagem queer é plenamente satisfeito como costuma acontecer em narrativas heteronormativas? Porque vale toda uma História do Cinema para percebermos que a “jornada do herói”, aquela com a estrutura mais clássica possível, com os 12 passos e tal, cabe quase exclusivamente ao homem hetero cisgênero branco, com raras exceções. Para os tipos marginais, tal jornada nunca está completa, e não raramente, seus desfechos passam bem longe de serem satisfatórios para seus protagonistas, mesmo que estejam eles vencendo obstáculos. Nessa estreia dos cinemas, um olhar certeiro é lançado ao seu protagonista, que transgride pela forma como o insere dentro de um conceito que a ele nunca foi dado o direito.
Não foram poucas as vezes onde nos perguntamos porque sempre temos de assistir longos processos de via crucis de personagens gays, em expressão explícita de sofrimento desbragado, com poucas chances de obter êxito em seus intuitos (leia-se, com clareza, alcançar a felicidade). Há cruzes demais para serem carregadas, eventualmente elas se mostram incapazes de serem movidas, e nossos personagens seguem em direção a eventuais tormentas onde raramente saem ilesos (leiam-se, finais carregados de tons trágicos, para onde podemos olhar). As comédias românticas que vêm surgindo de uns tempos pra cá (Alguém Avisa?, por exemplo) quebram essa vertente ingrata de eterna ode à desgraça, mas essas realizações não são produções onde tal estrutura narrativa esteja presente, em sua essência.
Aqui, o diretor luso-francês Ruben Alves consegue efetivar essa conversa com o adicional de tornar uma realidade repleta de marginalidade menos trágica, em contexto geral. Miss França, além da personagem protagonista, ainda engloba em seu roteiro uma outra figura queer, uma travesti de meia idade que trabalha ainda na zona de prostituição do bairro. Ou seja, distante do universo da juventude e da libertação de estereótipos do qual Alex está prestes a mergulhar, existe Lola, cujo tempo já passou, e que aceita o destino que foi traçado para ela pela força de outras realidades. Se existe algum personagem que está em cena representando uma situação antiquada na dramaturgia, mas que infelizmente ainda está inserida em nosso universo real, essa é Lola, uma forma do filme dizer que a fantasia não apaga a realidade.
O filme brinca com uma ideia de fantasia no mundo real, transformando o entorno de Alex em um cenário quase fabular. Ela vive em uma pensão habitada por pessoas de nacionalidades e origens das mais diversas, mas que se encontram na precariedade. Nada disso faz com que a direção de arte tenha sido pensada de maneira ultra realista, pelo contrário; o espaço cênico onde Alex se encontra é de excessos, e dele ela precisa ser enxugada para alçar novos voos. A personagem, que guarda alguma ingenuidade em si, aos poucos vai tomando contato com uma vida possível bem longe de quem lhe acolheu, e o filme cai naquela armadilha tradicional narrativa, do tipo que flerta com a ascensão e se deixa corromper por um canto da sereia que diminuiria seu caráter. É um argumento fácil, mas cuja identificação é rápida por meio de um público que precisa minimamente reconhecer certo conforto para comprar o conteúdo apresentado.
Se valendo de facilidades que tornam a experiência pior, Miss França torna acessível a ideia de adentrar naquele grupo de pessoas e tornar sua realidade possível nos corações e mentes. Alex não se define como uma personagem trans, ou não é nesse momento que o filme a encontra. Existe de fato um caminho de possibilidades que ao filme não interessa, neste momento, abordar. É muito mais sobre liberdade e possibilidade de transformação emocional e social, que de opção definitiva; o olhar de Alex diante de seu sonho de ser miss, que vem desde a infância, não tem inclusive nenhuma conotação romântica a priori; seu sonho é motivado pela feminilidade que está nele, mas que ainda hoje, mais de uma década depois da abertura da produção, não aflorou na completude. Em seu estado corrente, o filme flagra Alex na esteira da realização desse sonho, e de como precisou de uma estrutura ao seu redor para tal – ou seja, integração e aceitação.
O elenco acaba por nos situar em lugares diversos desses estágios de aceitação, através dos seus personagens. A supracitada Lola, Yolande, a própria Alex/Alexandra, a dupla formada por Randy e Ahmed, são todos pólos de sustentação de uma história muito sólida sobre ascensão emocional, que raramente é dada a marginais. Então independente das questões LGBTQIA+, ou acrescida delas, Miss França acaba sendo um oásis de delicadeza, sororidade (aquela de verdade, não a vendida de maneira restrita em twitter), de uma tentativa de reconhecer uma identidade que sempre é negada, tudo ainda representado na juventude. É como se o filme dissesse que o mundo é dos jovens – o que, de fato, é. Mas alguém precisa andar para que um grupo consiga correr um dia, né… tempos de Lola, tempos de Alex.
Um grande momento
“Eles adorariam nos ver fraquejando”