Crítica | Cinema

Alma Viva

O fim e o princípio

(Alma Viva , POR, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Cristèle Alves Meira
  • Roteiro: Cristèle Alves Meira, Laurent Lunetta
  • Elenco: Lua Michel, Ana Padrão, Jacqueline Corado, Ester Catalão, Duarte Pina, Arthur Brigas, Catherine Salée, Martha Quina
  • Duração: 84 minutos

Confesso que cheguei, como espectador, em um ponto onde a simples menção de alguns temas me causam arrepios de cansaço. São inúmeros os, digamos, subgêneros para a qual não tenho mais paciência, pois o cinema os explorou até não mais restar novidade de qualquer ordem. Um desses que não sai de moda, infelizmente, é o “o mundo visto pelos olhos de uma criança”, sob o qual quase toda edição do Oscar temos um título batendo cartão; eu ainda não me recuperei de Belfast. Mas é também nesses lugares que, por vezes, emergem grandes surpresas, e essa semana os cinemas estreiam Alma Viva, candidato português a última edição da festa da Academia estadunidense, e que se revela uma surpresa capaz de ainda diminuir outros títulos consagrados – no caso, se eu já tinha pena antes de A Excêntrica Família de Antonia antes desse aqui, agora ainda mais. 

Ajuda o fato de que a pequena Salomé não somente é muitíssimo bem escrita pela escritora e diretora Cristèle Alves Meira, como interpretada com impressionante realismo por Lua Michel, um daqueles achados que nos fazem ter ódio do mundo não ser mais globalizado. Isso porque a pequena deveria sair de Alma Viva com diversos contratos assinados por toda parte, já que é tão raro encontrar algo genuíno assim. Seu trabalho é completo ao nos envolver na produção com o tanto de carisma e um naturalismo que não se consegue da noite pro dia. Os méritos do filme não se fecham em sua protagonista, mas é dela que o espectador sai pensando ao fim da sessão, porque sua presença e corporalidade é muito forte, marcando presença para longe do que enxergamos. 

A comparação com o filme de Marleen Gorris vencedor do Oscar nos anos 90 não é à toa. Tanto ele quanto Alma Viva tem como base uma dose de realismo fantástico que centraliza a narrativa e também aproxima essa visão de Salomé acerca dos conflitos familiares que a cercam. Para tornar o ambiente livre de situações ainda mais trágicas, a leveza que algo do gênero acomete é providencial ao que se estrutura em cena, para um evento que não é exatamente ‘censura livre’ – um velório. E não qualquer um, mas um processo que dura dias e vai movimentando esse núcleo familiar não apenas na direção do conflito, como também o mobiliza para encontrar uma saída para questões práticas, além das respostas para tais situações. 

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Salomé não segue alheia ao que acontece, mas sim participa ativamente do universo onde está inserida. O talento de Meira está igualmente em mapear essas relações humanas desgastadas, como também inserir em contexto que duas movimentações estão seguindo em paralelo – o fim e o princípio seguem em paralelo em Alma Viva. A menina ainda muito nova está já em contato com a finitude de maneira não apenas a compreender e aceitar a dor que está em curso, mas a se integrar naquele aglomerado de pessoas e se assegurar do futuro que o seu próprio corpo representa, mesmo lidando com a representação mais concreta do passado. O amor que a pequena sente pela avó, essa situação de despedida em meio ao que vai sendo gerado, é um catalisador de um amadurecimento que não se consegue de outra forma; é a vida desse meu lugar, é a vida… 

O clima agridoce que é costurado em Alma Viva está em cada cena para elevar esse discurso a respeito da vida e da morte. Em contrapartida estão dois extremos opostos, a curiosidade da primeira fase da vida, os processos de descobertas, o lúdico criado em torno da vida real, e em outro pólo o desfecho da jornada, os ensinamentos que ficam para os nossos, os exemplos que não serão esquecidos. No meio do caminho, o destempero da idade adulta, quando já não está mais do nosso lado a inocência, e também ainda não alcançamos a beleza do efêmero. Não é assim que é a existência, fugaz e destemperada? Meira demonstra em sua estreia de longas uma sensibilidade que também é fruto do início de um caminho que torcemos para ser longo atrás das câmeras, e tão repleto de afeto como aqui, tão carinhoso com esses opostos da vida que chegam – ou passam, na maior parte das vezes, rápido demais. 

Um plus extra-filme (ou quase): Alma Viva estreia na mesma semana que Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes Nem Depois e uma semana depois de Fogo-Fátuo, e isso significa algo que creio nunca termos visto antes, a presença de três longas lusitanos em cartaz. O Brasil é um dos muitos países onde o cinema português, apesar da originalidade e da ousadia, ainda não alcança o circuito como deveria. Que o futuro seja mais amável com essa filmografia que não pára de avançar rumo ao futuro. 

Um grande momento

A briga durante o velório

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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