Crítica | Festival

O Canto das Amapolas

Luz ao tempo

(O Canto das Amapolas , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama, Experimental
  • Direção: Paula Gaitán
  • Roteiro: Paula Gaitán
  • Duração: 105 minutos

A trajetória de Paula Gaitán no cinema brasileiro fala por si só. Não há muito o que debater a respeito da importância e relevância que alcançaram obras como Exilados do Vulcão, Diário de Sintra ou Sutis Interferências, títulos hoje referenciais para entender uma fatia da nossa cinematografia. Ao adentrarmos em O Canto das Amapolas, essa Gaitán já anteriormente exposta pede passagem a uma outra, que não é melhor ou pior, mas que definitivamente exibe sua intimidade. E a essa fala clichê, que poderia render facilmente uma postura clichê, a diretora não se aproxima; o que a artista Paula Gaitán faz pela mulher Paula é de outra ordem, refrigera suas diretrizes e apresenta ao mundo uma figura mundana – e como é humano aceitar esse convite. 

Em cena, estão Paula e sua mãe – ou ninguém. O que vemos são escombros da memória, sonora ou inaudita. Passeamos por um longo caminho envolto na fantasmagoria do tempo, aquele ser implacável que não perdoa ninguém. Estamos todos à disposição do fim das coisas, e tateando por entre lugares vazios de nossa memorabilia pessoal. O que a diretora nos oferta é um pedaço de suas frestas afetivas, que, à margem das lacunas produzidas pelo que não é concreto, se deixa perceber afetivamente. Por trás dos ecos de uma vida rememorada, de lembranças que retornam e nos forçam a enfrentar mortos de infinitas recordações, está palpável o retrato de uma relação, nas fissuras invisíveis do som. 

O Canto das Amapolas está em imagens quando nos ressurge o passado forjado, instantes de fotogramas que tentam conjecturar uma possibilidade de registro. Vemos a ficção se inteirar dos sons documentais e ganhar vida; não é mais uma história que caiba apenas no áudio, mas que ressuscita graças ao artifício. Nesse modelo, o que está diante de nós são os lampejos de uma narrativa, os rasgos providenciais de algo que nunca foi como vemos. É uma possível leitura, como tantas outras, que o cinema faz da vida – uma coisa jamais será a outra, e vice versa. Mas como é próprio da atividade, o que é genuíno se rebela para as possibilidades do Cinema, cansa de ser apenas áudio para ser também visual. 

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É como se Gaitán estivesse fazendo o contrário da aventura dos irmãos Lumiére; primeiro o som, e por seguinte a imagem. Apenas o barulho trará a verdade, enquanto o plano trará a farsa, representada pela força do plano. Nesse sentido, O Canto das Amapolas é um filme que conversa com o passado, se apresentando para o presente. Dos podcasts para a imagem intraduzível, vemos a diretora se apropriar de um recorte e suas representações para o hoje, possibilitando uma reflexão muito pessoal com a história contada. Ciente das características da própria mãe, Gaitán a transforma em uma fabuladora do real, uma mulher em torno da fogueira a apresentar a luz do conhecimento para sua sucessora; movimento comovente. 

As idiossincrasias de suas duas protagonistas, e a relação que escapa do calor de suas vozes, ecoa em muitas outras relações, fora do plano. Existem os rasgos de cuidado e dedicação, ao passo que também observamos o buraco de uma fechadura. Dentro de alguns daqueles instantes, é evidenciado o desgaste de uma história que, a despeito dos laços, independe deles e se corroeu. 

Corta para um ato final, ou algo que o valha. O que era, já não é mais… agora longe do inalcançável, plenamente reconhecível. O Canto das Amapolas consegue, através de fugidios momentos, alcançar o ritmo inabalável do tempo. E isso se torna claro quando percebemos a força do som para denunciar esse corte; bem mais do que faria a imagem, o som é responsável por nos conectar aos tempos presentes em sua elaboração narrativa. São três recortes, e aí percebemos que não há presente, e esse é o grande ensinamento desse pequeno grande filme: não há escapatória ao passado, estamos todos condenados a chegar a um futuro onde já não seremos. Graças ao Tempo, seremos todos História, e após cada momento vivido, não existimos mais. 

Um grande momento
“vai, mamãe… continua…”

[28º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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