Crítica | CinemaDestaque

Eddington

Sociedade perdida

(Eddington, EUA, GBR, FIN, 2025)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Ari Aster
  • Roteiro: Ari Aster
  • Elenco: Joaquin Phoenix, Pedro Pascal, Emma Stone, Austin Butler, Luke Grimes, Deirdre O'Connell, Micheal Ward, Clifton Collins Jr., William Belleau, Amélie Hoeferle, Cameron Mann, Matt Gomez Hidaka, Robyn Casper
  • Duração: 148 minutos

Os Estados Unidos não colapsam por acidente, colapsam por delírio, e Eddington fala dessa derrocada com a frieza de quem conhece bem o terreno onde está pisando. Nessa comédia ácida, a pandemia de 2020 não aparece só como pano de fundo, é a argamassa que sustenta uma virada. O que era medo vira arma, a dúvida vira doutrina e o cansaço vira consentimento para a tragédia. Ari Aster e sua câmera voltam ao passado, se aproveitando do formato clássico do faroeste para transformar um velho mito de redenção norte-americana numa farsa sangrenta de desinformação.

No centro dessa espiral, Joaquin Phoenix encarna o xerife Joe Cross com um cansaço do mundo que se transforma em ódio manso e repentino. Ele se recusa a usar máscara, resiste às medidas sanitárias, e a partir com esse gesto, na loucura do mundo atual, se transforma em símbolo de “liberdade”. Liberdade para negar, para conspirar, para desconfiar de tudo e de todos. Sua revolta reverbera por toda cidade. O ator não se entrega a gestos grandiosos, o tom de voz, a impaciência no olhar, a rigidez no corpo falam por ele. Ao mesmo tempo, constrói um protagonista tão pouco heroico e desconstrói a noção de herói em meio à sua sanha autoritária.

Como contraponto, Pedro Pascal, no papel de prefeito Ted Garcia, tenta representar razão e repressão estatal, com um demagógico discurso liberal-democrata; posição que no filme aparece desestabilizada, caricatural, impotente. O embate entre Cross e Garcia parece menos uma disputa política racional e mais um barril de pólvora pronto para explodir. Pascal entrega uma figura inquietante e dividida em num terreno onde não existe consenso. A tensão política e moral estará sempre condenada à implosão.

O entorno dos personagens centrais, com a mulher de Cross, Emma Stone; o guru messiânico interpretado por Austin Butler; os vizinhos vacilantes, e os seguidores de teorias conspiratórias compõe o retrato completo de uma comunidade desmoronando por dentro. Sem caricaturas, Aster busca uma imersão. A câmera muitas vezes permanece impassiva diante da degeneração social, como se dissesse ao espectador “me diga quem é o monstro”. O ruído constante de redes sociais, de vídeos conspiratórios, de pânico coletivo funciona como trilha invisível que orienta o comportamento de todos. Na conclusão, quando o tiroteio final explode nas ruas de Eddington, a violência parece legitimada por uma espécie de liturgia da paranoia. Aster confirma, com brutalidade, que a violência política hoje se ergue de um terreno movediço formado de medo, desinformação e ressentimento.

Mas o gesto mais radical de Eddington não está apenas nas armas ou no caos. Está na constatação de que a destruição, coletiva, estética, simbólica, não progride por perversidade consciente, mas por preguiça moral, por exaustão social, por desespero silencioso. Aster filma não a barbárie explícita, mas a arquitetura lenta da ruína, com vizinhos que passam a desconfiar, famílias que se desintegram, corpos que se preparam para o que vêm. O filme atua como análise de um tecido social esgarçado, disposto a aceitar qualquer mentira capaz de oferecer alívio momentâneo, identidade falsa ou catarse vazia.

Para quem busca no cinema o indício dos desequilíbrios do presente, Eddington é um símbolo da ruína. Sem ser um filme confortável, nem um faroeste de redenção, é um reflexo do colapso que já se aceita com normalidade. Aster entrega uma obra que incomoda porque não julga diretamente, mas expõe o contágioda mentira, da intolerância, da desconfiança. E revela o silêncio cúmplice de quem assiste, sem reagir, enquanto a pólvora do delírio social se espalha.

Um grande momento
Desmentido

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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