Crítica | Festival

Saudade fez Morada Aqui Dentro

Tateando um mapa de sensações

(Saudade fez Morada Aqui Dentro , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Haroldo Borges
  • Roteiro: Haroldo Borges, Paula Gomes
  • Elenco: Bruno Jefferson, Ronnaldy Gomes, Ângela Maria, Terena França, Wilma Macêdo, Heraldo de Deus, Vinicius Bustani
  • Duração: 105 minutos

O multiverso da Plano 3 Filmes vêm se expandindo de maneira considerável nos últimos anos, e esse novo Saudade fez Morada Aqui Dentro é mais um capítulo dessa empreitada. Após o extraordinário Jonas e o Circo sem Lona nos apresentar as infinitas possibilidades desse grupo de realizadores baianos, Paula Gomes e Haroldo Borges – respectivamente produtora e diretor, e ambos roteiristas – não cansam de nos mostrar a veracidade em cima do horror da sociedade, com a mesma delicadeza nesse lugar com que trata todo o resto. Foi assim no já citado documentário e em Filho de Boi, estreia na direção de Borges. Aqui, existe ainda mais camadas em tudo que é proposto, como se não houvesse mais uma espécie de refém que era criado em torno de um de um tal ‘marketing social’, que levavam a teledramaturgia a tentar invadir o território dos filmes; o resultado vai além de qualquer bobagem televisiva. É socialmente inclusivo de inúmeras formas sem pedir licença ou legenda para alcançar o que está pleiteando, fora do campo.

O sertão da Bahia é absolutamente normatizado aqui, e isso é um dos muitos acertos do filme, que foge de uma certa glamourização da pobreza que frequentemente o cinema incorre mesmo sem perceber. Esse nunca foi o enfoque da Plano 3, que sempre olhou seus personagens longe das camadas sociais das quais eles faziam parte, com a radiografia focada no que eles intrinsecamente têm de humano. Mas Saudade fez Morada Aqui Dentro vai além porque joga com a classe média, diretamente, e com a sutileza de quem tem consciência de que o melhor debate está nas entrelinhas. A família de Bruno está acoplada em tudo que é disponível (em matéria de oportunidades) a um núcleo de classe média dos grandes centros urbanos, o que desmistifica a abordagem tradicional de quem reside longe da capital, sem sobrepor realidades. 

Ao contrário da tradicional costura para o subgênero “filme de formação” (o ‘coming of age’), Saudade fez Morada Aqui Dentro não está lidando justamente com a perda da inocência que separa meninos e meninas de homens e mulheres. Primeiro porque quase temos um estudo de personagem aqui, que circunda Bruno em suas silenciosas incursões tanto antes quanto depois de sua fatalidade; segundo porque o tal aprendizado que é o plano principal desse tipo de filme não é circunscrito em uma cartilha tradicional que envolva os modelos de outrora, como romance, família ou sociedade. Isso está na margem do que é dito, mas as transformações do protagonista são muito mais sensoriais e psicológicas, com ênfase em uma nova geografia tátil a ser descoberta em parceria, protagonista e espectador.

Apoie o Cenas

Como o espectador já se aproxima de Bruno sabendo de sua condição, assim como o personagem, Borges já nos coloca desde a primeira sequência, com os irmãos andando e caindo de bicicleta juntos, dentro de um processo de aprendizagem. A percepção passa a colaborar para o que vamos percebendo, dentro desse painel de situações que perpassam a tentativa de alguém em adentrar em território desconhecido, emocional ou prático. Pouco tem a ver, a princípio, com a ideia de uma perda tão cheia de significado ao cinema, que é uma arte de essência visual. O que Bruno está em busca em Saudade fez Morada Aqui Dentro é um desabrochar coletivo que o tire das afirmações vazias (e hilárias) para si mesmo e para seu irmão, e enfim possa sentir. 

É preciso aplaudir de pé que haja coragem suficiente em Borges ao não delegar a qualquer outro profissional a fotografia e montagem de uma produção onde já é diretor, produtor e roteirista, e realize tudo em resultados acima da média. O cargo de autor poucas vezes foi tão precisamente utilizado quanto aqui, e os resultados agregam a ele e seu coletivo a certeza que já tínhamos desde o surgimento de Paula Gomes: estar diante de uma pequenina revolução, para ressignificar o jogo de cartas do fazer cinematográfico do país. Sabemos da dificuldade de quem está longe do mapa de circulação coletivo, mas esse e outros grupos vêm mostrando que existe uma forma de sobreviver e crescer à margem, o que comunica imediatamente com a trajetória de seu personagem central, que poderia ser visto como um símbolo.

Não haveria, no entanto, pedestal suficientemente grande que mantivesse Saudade fez Morada Aqui Dentro de pé sem um elenco que correspondesse à altura do que é visto, e aqui temos um núcleo fabuloso, seja no coletivo ou no individual, correspondendo ao que o filme pede de maneira exemplar. No centro nervoso, o achado que é Bruno Jefferson, uma das mais complexas e corajosas estreias recentes, um ator que já nasce em posição de impressionar quem o assiste. Sendo o cavalo para um manancial de descobertas que vão do físico ao teórico, existe um mar turbulento dentro dos olhos de Jefferson, que atravessa a ebulição de uma tormenta indo da doçura à revolta, sem nunca deixar de proporcionar um manancial de humanidade. É uma interpretação tão completa como essa que simplesmente esquecemos que ela existe, mas que torna-se um referencial para o futuro e uma pedreira para seus pares quebrar. 

É literalmente impossível sair do filme desconectado a algo tão poderoso quanto o congelamento de sua imagem final. Me remete nitidamente aos grandes filmes da Nova Hollywood e da nouvelle vague, arrepia e nos contextualiza de que não estamos diante de algo despropositado, e nos coloca de volta no trilho da ficção, sendo o filme tão cheio de texturas documentais. O encontro com o Jonas original (sem circo e sem lona, dessa vez) poderia contribuir para essa afirmação, mas o ‘multiverso Plano 3’ nos assegura de que estamos diante de material dos mais ricos possíveis para a compreensão do que é cinema. Ao lado da performance gigante de Jefferson, é a coragem de uns Brancaleones como esses que arrepiam ao lembrarmos de Saudade fez Morada Aqui Dentro; não cabe apenas a poesia e o lúdico, mas também o trabalho duro e o talento que não nasce do acaso. Esse congelamento não acontece todo dia, à toa ou sem querer, mas sim é um desses casos raros onde a estupefação e a emoção são indissociáveis. 

[47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Um grande momento

A brincadeira na cama entre Bruno e Ronny

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo