- Gênero: Drama
- Direção: Audrey Diwan
- Roteiro: Marcia Romano, Audrey Diwan
- Elenco: Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet Klein, Luàna Bajrami, Louise Orry-Diquéro, Louise Chevillotte, Pio Marmaï, Sandrine Bonnaire, Anna Mouglalis, Leonor Oberson, Fabrizio Rongione
- Duração: 100 minutos
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“Eu quero escrever”. É a resposta da protagonista Anne (Anamaria Vartolomei), quando um professor lhe pergunta se, assim como ele, a aluna do antigo curso secundário de Letras (a Escola Normal) também gostaria de tornar-se uma profissional do ensino. Não se trata apenas da recusa de uma profissão que, nos anos 1960, era uma das únicas que uma mulher podia ocupar. Mas sim da afirmação de que Anne tem uma voz – sobre sua vida e sua história. Não é uma Anna Karenina num melodrama à mercê de um autor cruel. Ela está no controle da própria narrativa – e tem algo a dizer.
É essa atitude, e essa plena consciência de si mesma, que carregam O Acontecimento, segundo longa da diretora francesa Audrey Diwan, vencedor do Leão de Ouro no último Festival de Veneza. Adaptado do romance de Annie Ernaux, o filme não é a história de uma protagonista que quer fazer um aborto. É a história de uma jovem que quer viver sua vida e realizar todos os sonhos para os quais ela sempre lutou – e, para isso, ela precisa superar esse “pequeno” obstáculo, que se torna um verdadeiro calvário na conservadora França do início da década de 1960.
O maior trunfo da produção é que, apesar de todas as indignidades e mazelas sofridas pela personagem, ela é menos vítima que heroína da própria história. Anne é uma das melhores alunas de sua turma que, às vésperas dos exames de admissão, tem uma vaga quase garantida na universidade. E que, por um deslize banal, engravida. De garota-prodígio, ela passa a ser tratada com desprezo, julgamento, asco, condescendência, machismo e medo por todos/as que descobrem sua condição.
Porque, ao declarar sem hesitação que deseja abortar, a protagonista se torna uma criminosa em potencial, e uma “vadia” imoral e contagiosa. Negar o direito ao aborto a uma mulher não é só lhe proibir o ato em si: é dizer que ela não pode gostar, muito menos afirmar que gosta, de sexo; é ressaltar que ela não é plenamente dona de seu destino, ou de seu corpo; lembrar que ela é um objeto das leis e do julgamento moral dos homens; e confirmar que ela é um ser “inferior” no tecido social.
E Anne simplesmente escolhe não se sujeitar a essa realidade. Ela responde. É uma mulher do século XX num mundo que insiste em permanecer na Idade Média. E é por isso que Diwan a filma sempre em movimento, andando. A protagonista nunca está parada e, mesmo à medida que a gravidez avança e suga a energia de seu corpo e ela se mostra visivelmente mais abatida e cansada no quadro, a jovem nunca deixa de seguir em frente.
Curiosamente, Anne compartilha com a protagonista de outro premiado longa francês de 2021 – a Alexia de Titane – a premissa de ser uma mulher lutando contra um ser alienígena e indesejado que invade seu corpo. Os dois filmes, porém, não poderiam ser mais diferentes em seus estilos e abordagens. Por mais que Diwan use com esparsa maestria a trilha de Evgueni e Sasha Galperine – que torna a produção um suspense de corrida contra o tempo – e filme o clímax da história como uma verdadeira sequência de terror a la Invasores de Corpos, com direito a uma perturbadora performance de Vartolomei, O Acontecimento é um genuíno exemplar do realismo social francês, extremamente clássico e sem as ousadias formais da obra de Julia Ducournau.
Todo esse classicismo, por sinal, quase leva a pensar o motivo que levou o júri em Veneza a conceder o Leão de Ouro ao longa francês. Porque a produção é exatamente aquilo que o espectador espera dela ao entrar na sala, nem mais, menos – e essa é sua maior qualidade e seu maior defeito. É quando você se dá conta de que, por mais clássico que possa ser, O Acontecimento nos mostra imagens que o cinema historicamente se recusou a nos mostrar. E conta uma história que, por mais absurdo e ridículo que isso soe, ainda é profundamente subversiva e radical em 2021. Então, se insistimos em permanecer em 1960, que venham Audrey Diwan, Ducournau & cia. nos carregar – e o cinema – para o futuro com suas vozes e suas heroínas.
Um grande momento
O vaso. O choque.
O crítico viajou a convite da 66ª Semana Internacional de Cine de Valladolid