O Acusado

O Acusado chegou a Netflix com sede de mostrar identidade e vigor, e isso muitas vezes se confunde com agregar narrativas e formas de contar histórias alheias ao seu dispositivo. Não faz mal, se os objetivos são empolgantes, se a narrativa está viva ao redor do que é mostrado e se sua concisão dinamiza os eventos. Poderíamos dizer que está tudo no lugar certo em cena, menos o protagonista, em ironia desconcertante. Com uma duração tão milimétrica na apresentação do que tem a dizer, o filme ainda conversa com inúmeros núcleos sociais de hoje em mais uma forma de acertadamente demonizar as práticas de ‘fake news’, e seus desdobramentos. O que é arrastado para junto de uma espiral de horror contribui para o deslocamento de sua ideia até todos esses mesmos grupos, que insistem em não se ler nas narrativas que tencionam. 

Philip Barantini é um dos responsáveis por um dos mais formidáveis exercícios de tensão (fora de um lugar habitual de tensão) recentes, o empolgante O Chef, e aqui volta a nos servir um turbilhão de micro situações que eclodem em um lugar de horror social tão pavoroso quanto o caos que o causou. Através de um painel sucinto e de aparência sutil, os lugares por onde O Acusado passeia com cuidado, e transforma a visão do espectador com destreza, são reformulados a cada avanço narrativo, igualmente preciso. Antes da chegada de um clímax aterrador e muito corpulento, a história de Harri Bhavsar parece com a de muitos outros rapazes da idade dele, e os dados que o roteiro nos joga parecem apontar para lados múltiplos, sem que saibamos da sua essência real. 

Cultivado com parcimônia, o roteiro de Barnaby Boulton e Jammes Cummings apresenta seu protagonista com camadas que vão sendo desnudas, ao largo de sua queda em desgraça, motivado pelas impressões alheias e ao processo de caça às bruxas que se transformou a internet. O Acusado, filme e personagem, vão sendo revelados em sua intimidade, que a inteligência da escrita aponta para lados díspares, sem rasurar a essência de um ser humano, em tese, banal. Harri é um jovem rico, residente na Inglaterra, apaixonado pela namorada, e feliz com a possibilidade de apresentá-la à família; será que é exatamente assim, ou tão simples assim? São com essas certezas desconhecidas que o filme brinca com o espectador, dando a ele margem para mais leituras do que é servido. 

É nesse lugar que o filme nos encerra, que enfim O Acusado abre um diálogo com o que está no cerne de suas motivações narrativas. O julgamento de quem não nos conhece muda nossa vida ou a vida do alvo? Barantini e seus roteiristas mostram que sim, existe um lugar que não é passivo na indústria do tribunal virtual, que efetivamente analisa, julga e condena sem chance de defesa um mero desconhecido ou a traição que sofreu um artista como Luísa Sonza, por exemplo. São tragédias contemporâneas que duram o tempo de um clique, mas que podem efetivamente causar um rastro de destruição que em grande parte das vezes escapa às redes. Assim como em @Arthur.Rambo, aqui a tragédia maior dá lugar a uma mais específica, mas perpetrada em menos de 24 horas – o tempo que costuma durar uma fervura virtual, para enfim passar ao próximo julgamento. 

Há de se aplaudir mais uma vez o trabalho de Alex Fountain, responsável também pela montagem do já citado filme anterior de Barantini, e que aqui trabalha no limite da expectativa. São 85 minutos que parecem intermináveis, porque Fountain desenha o tempo de cada cena da forma meticulosa com que o diretor opera seus intentos, congraçando juntos uma ideia de exasperação que é rara de ser conseguida hoje. O Acusado é mais uma prova de seu excepcional trabalho conjunto, que só pode ser apreciado porque temos um roteiro que criou uma base de olhar para tais acontecimentos como um ‘efeito dominó’ em câmera lenta. É uma forma muito enxuta e absorvente de nos agarrar pela mão e criar uma sensorialidade para cada lance do jogo, que tem muitas intenções ao nos convidar para entrar. 

Montanha russa que ao mesmo tempo participamos e testemunhamos, O Acusado tem essa qualidade essencial, de nos colocar como participantes de um veredito moral em relação a alguém, para que possamos em seguida acompanhar as consequências de júris modernos e sanguinários. Com uma atuação estelar de Chaneil Kular (de Sex Education), é dele o corpo que vemos ser perseguido, vilipendiado, violentado e seviciado por uma trupe ensandecida nos confortos de seus lares, ansiosas por uma resposta que aplaque suas sanhas por justiçamento. Uma aulinha como essa, dada por Barantini e cia., deveria estar na frente da retina de tantos advogados de botequim que a rede mundial de computadores criou, ainda que nada diminua seus estragos e a forma nefasta como continuarão seguindo com suas vidinhas. 

Um grande momento

A casa da árvore