Crítica | Festival

Lô Borges – Toda Essa Água

Além do tempo

(Lô Borges - Toda Essa Água, BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Rodrigo de Oliveira, Vania Catani
  • Roteiro: Rodrigo de Oliveira
  • Duração: 88 minutos

Lembrar da minha infância é lembrar de música, daquela casa onde sempre havia um disco na vitrola e as tardes eram cheias das músicas que minha mãe cantava, das noites ouvindo meu pai tocar violão ou das longas viagens de carro e as fitas-cassetes gravadas especialmente para as muitas horas de estrada. Isso sem falar de “a palavra é…” uma das brincadeiras favoritas da família, um jogo onde se fala uma palavra e ganha quem souber uma música com ela. A relação com aquelas canções ia ser confundido com afeto, segurança, conforto e um monte de sentimentos positivos. Eram vozes e melodias que iam guiando o meu caminho, chamando a minha atenção e, porque não, formando a minha pequena pessoa.

Naquele mar de vinis, alguns tinham minha preferência e, entre eles, um que atraía por uma dubiedade gráfica que, na minha cabeça infantil, fazia o álbum ser dos adultos e meu. “Clube da Esquina”, com suas duas crianças na capa, estava ali dizendo que ele era deles, mas era também meu. Eram dois discos, uma coisa diferentona, e partir de “Com sol e chuva você sonhava…” era embarcar em uma viagem deliciosa. Nunca deixou de ser. E se entre tantos esse se destacava, entre suas músicas ali no meio de tantas faixas uma era aguardada com ansiedade, aquela que fazia o lado b ser começado pulando a primeira faixa, “a do girassol”. “Um Girassol da Cor dos Seus Cabelos” foi uma música que, como muitas, me acompanhou por toda a vida, marcou momentos, foi ganhando significados e até mesmo dono, e hoje tem um lugar muito especial dentro de mim.

E, por mais que outras canções de Lô Borges como “Paisagem na Janela” e “O Trem Azul”, fizessem mais sucesso com quem estava perto de mim, a pegada romântica da faixa com o piano e o estranhamento da pausa interrompida por cordas seguidas pelo coro – eu amo coros – me fizeram querer saber mais sobre aquele cara. Lô foi entrando na minha vida à medida que ela foi avançando por um caminho independente, seguindo junto com as canções que eram dos outros e minhas, mas marcando uma preferência que eu tomava como individual. Quanta curiosidade musical ele me despertava e quantos amores identifiquei em versos que pareciam perfeitos para as situações que eu vivia.

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Uma Canção

Uma canção é leve e pode sustentar
Toda emoção
Que pesa demais
E num passe de mágica faz voar
É gota d’água e faz transbordar
Vai na enchente arrastando
O que pode transformar
Em nuvem do céu
Da inundação

Uma canção é clara e pode penetrar
Negro desvão
Que um raio de sol
Com a súbita chama faz clarear
Um viajante que se fez perder
Por sua estrela se inicia
Nos mistérios de querer
A lâmina ser
De tal precisão 

Qualquer pessoa pode assoviar
A voz humana se decifra
Quando canta por prazer
De juntos trilharmos uma canção

Uma canção é lenha e pode consumir
Uma paixão, um caso de amor
Que o som das palavras vai traduzir
É rima simples e retém calor
Se ilumina quando toca uma pessoa
Que se quer bem perto da brasa do coração

Uma canção tem cheiro e pode transportar
Uma fração de um tempo qualquer
Que a gente viveu num outro lugar
É diamante para lapidar
Na pedra bruta segue o veio da beleza
Quando faz soar cristalina revelação…

Lô Borges/Ronaldo Bastos

Quando eu cheguei para assistir o documentário Lô Borges – Toda Essa Água, sabia que estava abrindo o baú do meu passado e, ao olhar para o documentado, estaria olhando um pouco para mim também. Existem filmes para fãs. Existem filmes de fãs. Existem filmes de fãs para fãs. O documentário de Rodrigo de Oliveira (Os Primeiros Soldados), codirigido por Vania Catani, é uma homenagem apaixonada pelo seu personagem e um presente para quem teve a vida marcada pelas canções do cantor e compositor mineiro. Muitas delas embalam o longa e fazem com que a aproximação com Lô seja forte e imediata. Não que isso fosse necessário. A maneira particular com que conta suas boas histórias, simpático sem perder um jeitinho tímido, já atrairia as atenções, mas o filme quer ir mais longe.

Oliveira sabe que pode contar com a nossa memória para criar a intimidade que tanto almeja. Manuseando bem isso, vai costurando essas lembranças às do seu retratado e às daqueles que estão e estiveram com ele, em caminhos pessoais e criativos, em afetos e composições. O que ele faz, e esse é um dos grandes segredos dos bons documentários musicais, é criar um jogo imaginário de troca de vivências, onde se quer saber mais de quem fala porque este, de algum modo, já sabe muito sobre você. O diretor e sua codiretora escolhem o tom informal para o encontro. Além de ser o que mais combina com o documentado, parece ser onde se sentem mais confortáveis na criação. E assim partem para o resgate de uma história que tem formato de prosa gostosa. Com as músicas fortalecendo a aproximação, passear com Lô, acompanhar seus encontros e participar daquela rotina torna-se tão natural que é difícil se despedir. 

É curiosa a força do filme com o público, pois muitas das histórias ali contadas já são conhecidas. Há, obviamente, novos momentos, surgidos especialmente na elaboração de Lô Borges – Toda Essa Água, subtítulo dado lembrando a última faixa instrumental do primeiro álbum de Lô, lançado em 1972. Música que ganhou letra e está lá na gravação do show “Tênis + Clube no Circo Voador”, de 2018. O novo vem em descobrir toda a água que passou e ainda corre nesse rio, o que a vida trouxe, o que ficou, o que mudou e segue mudando. A vontade de produzir que cresce cada vez mais marca o momento do compositor e ganha uma atenção especial, nos levando a pensamentos e considerações que ultrapassam a projeção. Do mesmo modo, o recorte de tempo transborda o próprio longa e se completa em cartelas. É como filmar a perenidade da música, e como se a inquietude da inspiração mostrasse que o tempo é sempre pouco demais para registrar a criação.

Para fãs que vão falar para outros fãs, em sons do passado e do presente, o artista se revela, criando um ambiente de conexão e troca perfeito. E depois de passear com ele pelas ruas de Belo Horizonte, estar na sala com sua família e testemunhar conversas com seus amigos mais próximos, agora íntimos, temos a chance de cantar “aquela do girassol” junto com ele. Além de Lô Borges – Toda Essa Água ser uma bela homenagem ao artista, é uma experiência inesquecível.

Um grande momento
Com Bituca

[17º CineBH International Film Festival]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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