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Spencer

Uma mulher sob influências

(Spencer, GBR, ALE, EUA, CHL, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Pablo Larraín
  • Roteiro: Steven Knight
  • Elenco: Kristen Stewart, Sally Hawkins, Timothy Spall, Sean Harris, Jack Farthing, Jack Nielen, Freddie Spry, Stella Gonet, Richard Sammel, Elizabeth Berrington, Lore Stefanek, Amy Manson
  • Duração: 117 minutos

Ainda que o enfoque central de Spencer seja na história de sua protagonista, nascida Diana Frances Spencer e tornada Princesa de Gales, carinhosamente conhecida como Lady Di, chama a atenção que Pablo Larraín tenho escolhido vazar sua mensagem para além da sua figura central, colocando toda a família da qual ela acabou fazendo parte como figuras vitimadas, de alguma ou de muitas formas. Na complexidade da construção do filme, não apenas Diana é figura trágica, mas ela faz parte de uma estrutura desumanizante interessada exclusivamente na imagem; o que fazer quando você é um produto de consumo?

Larraín, chileno com uma das carreiras mais estáveis da atualidade, dirigindo obras do porte de No e Tony Manero, vem tentando se embrenhar no universo das famigeradas biografias, deturpando-as em suas ideias pré-concebidas. Para que contar didaticamente algo que poderia ser facilmente assimilado com um passeio no Google? Em Neruda e em Jackie, ele desconstrói seus protagonistas para longe da observação social que foi criada para suas historicidades particulares, cada qual em sua esfera, obedecendo temáticas pertinentes aos retratados sem destituí-los de seus valores e dos perfis que possam ser lidos a respeito de seus relevos.

Ao mesmo tempo em que sua envergadura pode empunhar o olhar autobiográfico, Spencer se recusa a uma fórmula pré-estabelecida; seu desejo é pela investigação mais arriscada, de gênero, de ambiência, tão centrada quanto coletiva. Não à toa que seu título não se refere a um prenome, mas ao sobrenome – sua busca por uma identidade que julga perdida e pode ser recuperada em um espaço físico, que não lhe cabe mais, mas que pode ser retomado, ou ao menos recordado. Resgatar algo que escapou pode nos tornar, uma vez mais, libertos de uma vida que não lhe veste mais com a mesma utilidade, deixar de ser um cabide de existências e de imposições alheias.

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Spencer
Neon

Dos escombros do seu passado emocional até os monumentos assombrados que invadem sua existência, Diana é uma figura atormentada para muito além do tratamento mais óbvio da expressão. Dessa vez, o autor chileno não buscou investigar poeticamente sua figura, ou versar sobre a fé em signos mitológicos a respeito da verdade, mas em desdobrar em mais uma figura essencialmente trágica o que a fez momentaneamente figura de conflito (sobre)natural. Aos poucos, do espantalho despido na relva até os signos que induzem a prisão espacial, até a libertação através da fantasia, escutamos o arrastar das correntes sobre o assoalho límpido se transformar em pavor estrutural cênico – um purgatório da própria história.

Aos poucos, Spencer se mostra multifacetado de possibilidades estéticas e narrativas, todas bem sucedidas, como a incursão pelo cinema de horror. O que pode soar como algo absolutamente nonsense de se aventurar para se lançar no terreno biográfico, na prática se mostra como uma incursão objetiva para alguém tão refém de fantasmas de muitas ordens. Larraín não se pretende tradicional e suas escolhas, sejam elas objetivas ou subjetivas, se aventuram por um olhar sem barreiras – suas diretrizes se cruzam para conceber uma paleta particular de gênero. Ainda assim, os signos matrizes de sua proposta são elencados com precisão e arrebatamento, sempre mediando contar uma história, e não perdendo-se em virtuosismos vãos (Ema).

Larraín não se contenta em elaborar um conceito visual e passar por cima dele com sua história e suas obrigações narrativas; é Spencer quem absorve essa carga dramática que deveria passar por variações biográficas e molda para uma fôrma de outra esfera. Toda uma variação do terror, indo do gótico até o body horror, passando pelo conceito de casas assombradas até o psicológico, são inúmeras demonstrações de conhecimento de suas variações. O mais orgânico é o que já foi citado, nenhuma dessas bifurcações são construídas para demonstrar competência vazia, mas estão inseridas em um contexto de transformação de um modus operandi tão surrado quanto a biografia para uma nova caracterização, sem perder suas feições – ainda está lá, o retrato de um ícone de seu tempo.

Spencer
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No corpo de Diana, temos uma Kristen Stewart jamais vista antes. Já caíram em repetição as afirmações que ainda julgam negativamente o potencial da intérprete, mas mesmo os admiradores viam nela um espectro que poderíamos chamar de carachter actor, um desses tipos específicos de profissional onde geralmente as obras os abraçam e vestem sua persona. Em Spencer, Stewart permite a seu material o movimento contrário, indo até a obra e se imbuindo de um espaço, de uma projeção intuitiva, de uma corporalidade que a faz mutante de sua própria esfera – ela sai de si, de marcas muito específicas de sua persona, para adornar-se de Diana, aflorar em cada gesto, cada olhar, o manancial de possibilidade que a grandeza da obra em si e de sua personagem permitem.

Ao observar o andar da atriz, particularmente, vejo o maior assombro estético de sua dedicação. Figura pública de projeção, Stewart tem a vida acessada com facilidade, e suas elogiadas performances até aqui eram um desdobramento de um universo que ela mesma criou. Larraín a desconstrói, e ela projeta um outro arsenal de interpretação, propiciando também com sua entrega a base que o filme busca dentro do cinema de gênero. Há um apavoramento gradual, um desconforto transformado em pavor, uma exasperação que contribui para a experiência coletiva proposta em cena, onde obra e atriz se intercalam e se completam em uma busca constante por diferentes estágios de sua busca também estética – desconforto, inadequação, medo, desespero, horror e, enfim, liberdade.

Interessa ao longa Spencer não apenas tratar de fatos e ações pertinentes a sua protagonista, não apenas obedecer uma ideia estrutural decalcada na existência, mas exatamente desaparecer sob essa mesma existência, para tornar-se enfim sujeito. Diana não se vê como sujeito, e se debate contra essa necessidade de cerceamento de identidade; não é a toa que seu filme se inicie e se encerre com sua figura central como mantenedora da condução do seu próprio rumo, que se expande do início trôpego e incerto, quase amedrontado, ao final libertário. A direção de outrem tiraria sua vida, mas quando precisou comandar a si mesma, Larraín diz, Diana foi num crescendo de auto confiança, até se tornar exemplar.

Um grande momento
O corredor cambaleante

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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