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Martin Eden

(Martin Eden, ITA, FRA, ALE, 2019)
Nota  
  • Gênero: Fram
  • Direção: Pietro Marcello
  • Roteiro: Maurizio Braucci, Pietro Marcello
  • Elenco: Luca Marinelli, Jessica Cressy, Vincenzo Nemolato, Marco Leonardi, Denise Sardisco, Carmen Pommella, Carlo Cecchi, Autilia Ranieri, Elisabetta Valgoi, Pietro Ragusa
  • Duração: 129 minutos

Ah, a juventude! Aquele momento em que qualquer descoberta parece ter o peso de toda uma vida. Quando as teorias vêm tão cheias de força e radicalismo que conseguem devastar qualquer coisa que houvesse antes no caminho. O inebriar das novidades, das possibilidades de elaboração, o descobrir-se ser pensante e ver sentido naquilo que se ouve e lê, adotando posturas e discursos. Sendo radical o quanto fosse. É o momento de se encontrar e é fundamental passar por isso. “Martin Eden“, o livro de Jack London, está muito nesse lugar afetivo. Quando vem devastando aquilo que já era uma descrença, a burguesia capitalista; e questionando o que se tinha como solução, o socialismo marxista. Os discursos do jovem individualista frustrado com o mundo tinham esse poder de sacudir, fazer pensar e colocar uma nova ideologia no caldeirão que é a compreensão da sociedade e de si mesmo para qualquer jovem.

Muito da obra de London, portanto, relaciona o posicionamento do ser (Eden) com a sociedade que o cerca, questionando-a, enxergando nela os contrassensos de sistemas falidos, sejam os utilizados ou os propostos. Obviamente, há um pano de fundo no romance de origem, a batida história de amor entre o pobretão e a menina rica – ele, ignorante e esforçado; ela, culta e educada – que funciona também como impulsionador para o refinamento e melhor apresentação das ideias do protagonista. Mas é sempre nestas que está o ponto focal, na inadequação ideológica com um mundo que não enxerga o indivíduo, na fala de alguém que se viu enredado pelo mesmo sistema e, mesmo mantendo o discurso, não sabia mais se separar daquilo que condena.

Martin Eden

A confusão do personagem, que não só apresenta o individualismo para a discussão como questiona ideologias dominantes estabelecidas, é muito interessante por trazer essa possibilidade de novas descobertas aos mais jovens, por abrir novos caminhos no entender as relações de poder e a própria sociedade e é por isso que “Martin Eden” é um livro tão interessante e marcante. Eis que chega agora aos cinemas, assinado por Pietro Marcello. Ambientado na Itália, na primeira metade do século passado, filmado elegantemente em 16mm, mescla imagens reais a tomadas inspiradas com a combinação das fotografias de Francesco Di Giacomo e Alessandro Abate. Junto à figura bem apessoada e imponente de Luca Marinelli na pele de Martin, o retorno a London após tantos anos, frustrações e tombos – ou seja, após o amadurecimento – começa de maneira agradável.

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E até que permanece assim por um tempo. O desenrolar da trama, a descoberta do amor, a divisão das classes, os questionamentos, a busca pelo conhecimento, o deslocamento, o não-pertencimento. Está tudo ali, num caminho que já é conhecido, mas que não é mais atraente. É lindo, tem quase tudo no lugar, a forma quase perfeita, mas o olhar volta-se para algo que é menos interessante do que o todo. E não é uma questão de conhecer ou não o livro. O que está no livro é dado ali, ainda que de maneira apressada e em discursos, mas se opta pela derrocada humana. E o olhar tão atento a essa deterioração do indivíduo, tão relevante quando se toma sua ideologia em consideração, aqui fica relegada a uma outra motivação.

Martin Eden

O jogo de atenções também tem outras influências na própria narrativa. Para tentar transformar aquele marinheiro autodidata em Martin Eden é preciso apresentar suas ideias de alguma forma. Se a solução funciona bem com alguns escritos, ilustrados com poéticas imagens, apresentadas com filtros e texturas, alguns discursos e cartas soam artificiais, como se tivessem o único objetivo de indicar aquilo que seria fundamental na determinação do personagem. Nesses momentos, outros problema também se torna evidente: Marinelli não é mal ator, mas também não consegue levar o papel em toda a sua complexidade. Se às vezes funciona muito bem, em outras parece perdido e deslocado, repetindo-se em trejeitos que nem sempre cabem à situação posta.

Com um personagem tentando encontrar sua essência – seja na reconstrução do personagem de London, na criação do personagem por Marcello ou na interpretação de Marinelli -, o longa-metragem tem pouco espaço para se dedicar àquilo que talvez seja o mais interessante nos dias dias de hoje: o questionamento das ideologias tidas como definitivas. A derrocada pessoal, com a frustração sentimental mais destacada do que a própria inquietude com o mundo e o ser humano, é cansativa e quase enervante. Embora esteticamente bonito e elaborado, Martin Eden se perde no tempo e no ritmo, se alonga demais no drama de uma pessoa que nem é tão envolvente assim, sendo apenas um filme arrastado e quase chato sobre uma pessoa mais chata ainda.

Não que toda história tenha que trazer uma mensagem engajada ou política (embora todos, em alguma medida, tragam), há histórias que podem ser apenas sobre indivíduos. A questão de Martin Eden é que sua história está intrincada com o assunto e não há como fugir dele, então, poderiam se aprofundar um pouco mais. O olhar para o individualismo, aquele que percebe o homem como o fim e o começo de tudo na busca de suas satisfações e liberdade, tem seu valor para que concepções mais elaboradas sejam formadas. É a graça de se recuperar obras que trazem essas descobertas para as vidas de tantos jovens por aí. É o poder transmitir para novos jovens, de uma nova maneira, por outros veículos, mensagens que podem construir novos pensamentos e maneiras de pensar. Pena que com Martin Eden não deu. Ficou sendo uma história ególatra, muito focada apenas no homem e disfarçada de história de amor frustrado entre o rapaz pobre inteligente e a moça rica mimada.

Um Grande Momento:
Discurso aos socialistas.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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