Crítica | Catálogo

O Rio do Desejo

Ebulição emocional

(O Rio do Desejo, BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Sérgio Machado
  • Roteiro: Sérgio Machado, Milton Hatoum, Maria Camargo, George Walker Torres
  • Elenco: Sophie Charlotte, Daniel de Oliveira, Gabriel Leone, Rômulo Braga, Gilda Nomacce, Coco Chiarella, Jorge Paz, Adanilo.
  • Duração: 105 minutos

Há quase 20 anos atrás Sérgio Machado lançava Cidade Baixa, seu primeiro filme de ficção e que acabou se tornando uma referência à sua filmografia, e um dos grandes projetos daquela década, confirmando os talentos de jovens Wagner Moura e Lázaro Ramos, e apresentando uma Alice Braga inesquecível. Corta para O Rio do Desejo, seu novo filme sendo lançado dezoito anos após essa estreia, que guarda muitos pontos em comum com o título citado – o desejo carnal como mote de conflito e movimentação de ações, a aliança quebrada pela traição, o trágico de mãos dadas com a paixão. É como se, mais uma vez, Machado nos alertasse para as decorrências do calor insuportável na qual somos arremessados quando cedemos a um impulso essencial.

O ponto de partida de O Rio do Desejo é veloz, se espelhado com seu desenvolvimento posterior, e não guarda muita preparação de ritmo; as coisas são assim, se apresentam dessa forma apressada, sem muita contextualização e as consequências são a partir do que vemos. Parecem deslocadas no tempo sem uma preocupação posterior, como se tivessem sido brotadas na terra e tragadas de volta à ela, muito rapidamente. Pode-se argumentar que toda história nasce de algum lugar, mas os protagonistas se conhecem em um contexto de crime, que não é mencionado após a abertura, nem seus coadjuvantes, e olha que um dos personagens é mãe da protagonista – Gilda Nomacce, em mais um de seus grandes e inexplicavelmente abortados momentos, desta vez em consequências marcantes ao roteiro. 

O Rio Doce
Divulgação

O problema do desenvolvimento do filme passa justamente por essa largada. Escrito a espantosas oito mãos a partir do conto de Milton Hatoum (o próprio, mais Machado, Maria Camargo e George Walker Torres), O Rio do Desejo parece convergir em lugar de acerto. A partir do afastamento de um dos protagonistas, tudo é restaurado; o filme é concebido com assertividade a partir daí. Eu diria até que deveríamos acompanhar a narrativa a partir dessa separação, e chegar até esse momento em rápidos flashbacks, é o que faria sentido na montagem. Da viagem de Dalberto para frente, o filme parece então se ancorar com assertividade no que quer contar e enfim recriar sua base, agora sim, com fundamento. 

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Desse ponto em diante, o longa chega a esse entendimento de cadência, e de leitura dos personagens, que vai além do que já era apresentado visualmente desde o início, e que consistia na introdução à ambiência. O Rio do Desejo, embora queira nos situar naquele lugar e naquelas emoções, não se prende muito a tentar “geografizar” seu ponto de origem. O que está no cerne da construção é ambientar o espectador no ponto de ruptura emocional de cada um em cena, ou mais especificamente entre os quatro protagonistas. Anaíra, Dalberto, Armando e Dalmo têm costuras distintas e comportam-se de acordo com sua geolocalização, tanto na expansão quanto na retração, mas sempre respondendo a estímulos criados a partir do seu entorno. 

A fotografia de Adrian Teijido (de Marighella) é um ponto crucial para compreender esse excesso de estímulos visuais, a quentura que vem do espaço físico e da pele de cada um de seus atores, e O Rio do Desejo também é uma experiência sensorial. Adrian Cooper (de O Coronel e o Lobisomem) ajuda com uma direção de arte que nos transporta para as margens do rio Amazonas e as localidades que o beiram. Com isso, a ambientação do filme, em sua totalidade, acaba por fazer um trabalho de comunicação junto a Machado e seus atores, todos contribuindo para o ponto em comum de radiografar aquele pedaço de Brasil e seus habitantes em meio ao furacão de paixões inevitáveis.

O Rio Doce
Divulgação

Quando adentramos em cada um daqueles personagens, percebemos como seu interior foi aprofundado pela escrita anterior aos atores, mas essencialmente por aqueles corpos. Não há entre eles um desenho que esteja errado, exagerado ou suavizado pelas imagens, ou pelas linhas de diálogo. A exposição conjunta, que não depende apenas do que é dito mas principalmente pelo que é devassado pelo olhar e pelas imagens, carrega O Rio do Desejo do lugar onde ele estava, da incompreensão narrativa até um lugar de entendimento maior. Não é mais somente pelo que é verbalizado, mas pelo suor incessante, pelo cansaço emocional, pelo despertar de sensações que são afloradas pelas circunstâncias, mas também pelo excesso de vida em cada um dos quatro. 

O trabalho de Sophie Charlotte, Daniel de Oliveira, Gabriel Leone e Rômulo Braga é praticamente uniforme, cada qual alçando níveis de excelência em momentos distintos, justamente para todos exercerem em conjunto o melhor possível. Ainda assim, Charlotte e Braga conseguem estar um degrau acima por terem personagens ainda mais difíceis de desvendar, compreendem em absoluto suas nuances, além de carregar o público junto consigo rumo ao horror. O Rio do Desejo fica também ele a um passo da elevação, e o melhor aqui acaba por acontecer, que é o crescimento progressivo da obra. A compreensão coletiva de uma transcendência evidencia sua intenção, mas não consegue esconder seu início atropelado, e o esquecimento injustificável de uma personagem tão disposta quanto a vivida por Nomacce, que arranha sensivelmente o resultado. 

Um grande momento

Dança a três

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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