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O Silêncio

(Tystnaden, SWE, 1963)
Drama
Direção: Ingmar Bergman
Elenco: Ingrid Thulin, Gunnel Lindblom, Jörgen Lindström, Håkan Jahnberg, Birger Malmsten
Roteiro: Ingmar Bergman
Duração: 96 min.
Nota: 9 ★★★★★★★★★☆

Deus e a incomunicabilidade são temas que perpassam a obra de Ingmar Bergman. Destacados em obras-primas como O Sétimo Selo e Persona, são os principais motivos de existir da Trilogia do Silêncio, formada por Através de um Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio. Os três filmes se complementam em uma narrativa própria, construindo tudo o que o diretor sueco concebia sobre a ausência de Deus e a impossibilidade de comunicação.

Mais do que a repetição dos objetos de estudo, a análise dos três filmes em conjunto faz com que uma noção de causa e consequência se estabeleça para questões que sempre afligiram o diretor e, bem ou mal, em um mundo dominado pela religião cristã, tornam-se comuns a todos. Mais do que a culpa e todas outras as efetivas armas coercitivas que vêm com a religião, há na distorção de um poderoso ser invisível e imaginado toda uma constituição humana que se reflete e explica.

O Silêncio (1963)

A relação corroída e não conversada entre os membros da família em Através de um Espelho reflete-se na falta de credulidade nesta criação humana do ser superior, que aparece àquela que tem a saúde mental cada vez mais degenerada como uma aranha escondida em um armário. Se aparece assim aos crentes, os que deliram, é, ao mesmo tempo, sentida de maneira diversa por aqueles que não mais acreditam. Para estes, Deus perde sua aura divina e torna-se real – ainda que sempre metafísico – na comparação com um sentimento que todos conhecem.

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Nesta casa, é o alcançar esse deus convertido em amor que possibilita a quebra da incomunicabilidade. O tema, porém, retorna em Luz do Inverno de maneira mais incisiva. O silêncio de Deus atormenta um dos homens que na Terra falariam por ele. Ainda que se chegue à mesma conclusão sobre a identidade real da divindade, o não escutar e não ter respostas desencadeia uma falta de vontade no saber ouvir. A ausência de Deus converte-se em isolamento e, ainda que tenha um final que ameniza a impressão, mesmo que ele venha depois de uma longa análise sobre o abandono de Cristo na cruz, é nessa impossibilidade de ouvir e falar que se constata sua inexistência. Assim como na inexistência da entidade corrobora e justifica a impossibilidade de se comunicar.

O Silêncio (1963)

Assim chega-se a O Silêncio, terceira e última parte da trilogia. Aqui Deus não mais existe e as preocupações dos personagens são mais terrenas, embora nunca deixem de estar relacionadas. Se ele não existe, a comunicação segue não existindo e atinge o seu ápice com a maior demonstração humana da incomunicabilidade: a guerra. Bergman faz questão de destacar a dificuldade de fazer-se entender. Seja entre as duas irmãs, entre mãe e filho, ou entre as pessoas com quem têm contato.

Tudo no longa, desde seus primeiros momentos, existe para reafirmar e ressaltar essa dificuldade no convívio social ou familiar, minando aquele amor previamente determinado como a existência de Deus. Na cabine, Jonah pergunta à Esther, sua tia, cuja profissão não por acaso é a de tradutora, o que querem dizer as palavras em um papel. “Eu não sei”, ela responde antes que ele tente se aproximar da mãe, Anna, que foge do contato. Arisca ao menino, ela muda de lugar e, ao ser seguida, improvisa um travesseiro para ele não fique em seu colo, até que uma crise da tia o faz sair da cabine. Ali naquele trem, é basicamente no observar dessa criança que O Silêncio começa a ser construído.

O hotel, local habitado pelas mais diversas pessoas, na desconhecida cidade de Timoka, onde se fala uma língua completamente desconhecida – sinteticamente criada pelo próprio Bergman -, é o segundo ambiente minuciosamente preparado pelo diretor. Ali estão os momentos de respiro que justificam a unidade do trio familiar, em pequenos cuidados desinteressados, num esfregar de costas no banho, na brincadeira com o perfume, na promessa de leitura ou em conversas nem sempre positivas ou construtivas, mas ainda conversas.

Ainda assim, o que impera na dinâmica familiar é o distanciamento, o estranhamento, o desinteresse. As barreiras formadas estabelecem núcleos distintos e independentes que vez ou outra se chocam, gerando uma configuração de necessidade e desprezo. Esther está morrendo e segue trabalhando com pausas alcóolicas para fazer com que sinta menos sua própria sina e a incapacidade de usar todo o seu conhecimento para desvendar o lugar onde se encontra. Anna procura a fuga em encontros furtivos com homens desconhecidos onde não precisa e nem quer precisar ser compreendida. Sobra a Johnan, com sua pouca idade, o desvendar daquele local, num afastamento de tudo aquilo que é obrigado a viver.

O Silêncio (1963)

Bergman conduz o espectador entre esses três caminhos, transmitindo a desesperança e a melancolia de amores que não conseguem realizar-se, e, embora haja toda uma frieza naquilo que é demonstrado, o faz de maneira envolvente e delicada. Mesmo que se tenha a consciência que ali nada poderia ser diferente, há um interesse, por vezes mais identificado do que se gostaria, no acompanhar daquelas relações. Além de propiciar a Jonah momentos de diversão, como a sequência com a trupe espanhola de anões de circo, entre embates e ausências, figuras como a do camareiro servem como um respiro. Em sua simpatia e cordialidade, com murmuros ininteligíveis, ele é o único que se consegue fazer entender, surgindo como uma ocasional comunicabilidade em um universo que parou de olhar para o outro.

Outros momentos são sublimes ao destacar outras possibilidades de contato. Seja na atenção especial dada às mãos, nem sempre para falar no toque, mas na demonstração de sua importância enquanto ferramenta; ou na belíssima cena que confirma a universalidade da música, uma linguagem que não encontra barreiras.

Mas é mesmo na dureza e na impossibilidade que o filme encontra o seu tom. É esse o ambiente que Bergman pretende demonstrar, numa quase descrença do homem enquanto ser social, na concentração daquilo que existe de pior em um único espaço, como algo que domina toda a existência, mesmo que pausas existam.

Embora confirme toda a construção sobre a ausência de comunicação e a inexistência de Deus dos filmes anteriores, o curioso em O Silêncio está na contradição que o próprio longa imprime, expondo uma certa insegurança nas convicções do realizador. Ao alcançar a amargura da guerra e trazê-la para núcleos restritos, numa relação não-sabida de causa e efeito, há uma confirmação de que tudo isso só deixa de existir, e deixa, na presença daquilo que é negado. Como se o expor a não-existência confirmasse a existência em si.

Um Grande Momento:
A conversa com o camareiro.

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Texto originalmente publicado na Revista Lumescope

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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