Crítica | Cinema

O Último Azul

(Gabriel Mascaro, BRA, MEX, NED, CHL, 202584)
Nota  
  • Gênero: Aventura
  • Direção: Gabriel Mascaro
  • Roteiro: Gabriel Mascaro, Tibério Azul
  • Elenco: Denise Weinberg, Rodrigo Santoro, Miriam Socarras, Adanilo, Rosa Malagueta, Clarissa Pinheiro, Dimas Mendonça, Daniel Ferrat, Heitor Lóris
  • Duração: 85 minutos

Por trás do encantamento visual e da aura fantástica, a distopia O Último Azul de Gabriel Mascaro trata de um tema atual, universal e doloroso: ser idoso em um mundo que não mais enxerga essas pessoas como seres humanos capazes. Independentemente de seus desejos e capacidades, e pior, do modo como sentem ou se enxergam, a partir de certa idade são reduzidos a um peso, um fardo que precisa ser removido. Na ficção do diretor, um governo autoritário ordena o exílio compulsório de todos os idosos acima de 80 anos para colônias isoladas, a fim de que que “desfrutem” seus últimos dias. Descartáveis, os idosos viram parte de uma política de Estado que exclui para maximizar a produtividade econômica.

No centro desta metáfora sobre a invisibilidade social e o etarismo estrutural do Brasil atual está Tereza, aos 77 anos. Capturada pela engrenagem que lhe rouba o direito de continuar existindo da maneira que escolheu, ela se rebela e foge na data marcada para sua partida. Sua fuga é uma recusa radical não só à colônia, mas à própria incapacidade e falta de autonomia que querem impor. E nessa decisão reside o pulsar político mais poderoso do filme. A aventura é o oposto do que se força, quando encontra na protagonista alguém muito distante dos jovens que costumamos ver descobrindo a vida.

Mascaro coloca Tereza em uma jornada pela Amazônia, por seus rios, suas matas, suas cores, suas luzes e seus reflexos; em um contraponto poético à violência burocrática da qual ela escapa. A cinematografia de Guillermo Garza transforma a natureza em parceira da liberdade, tão significativa quanto os corpos com os quais ela se encontra. Rios e floresta tornam-se espaços de resistência e reinvenção, e, ao mesmo tempo, cenário daquilo que se pode ainda imaginar e celebrar, mesmo quando o mundo quer proibir o direito de sonhar.

Denise Weinberg vive essa figura política e afetiva de maneira cativante e envolvente. Sua Tereza não é vítima, é pura força. Com seu humor afiado, entre falas certeiras e o silêncio de quem observa com atenção, ela resiste não apenas com o corpo, mas com a capacidade de lembrar que voar, ainda que simbolicamente, é um direito inalienável. Rodrigo Santoro surge como Cadu, uma presença em tonalidades que oscilam entre a grosseria e o ternura. Ele introduz a protagonista ao artifício mítico da narrativa, algo que mescla o real e o fantástico. Um encontro que não banaliza, mas torna ainda mais potente a força da rebeldia de uma mulher que se recusa a ser apagada.

Em uma aventura deliciosa em busca da vida e do enfrentamento por aquilo que se quer, O Último Azul não pensa no fim como tragédia inevitável; ele o apresenta como ato político, como opção que se impõe à degradação da dignidade. Há humor e leveza. Uma leveza que chega com o peso de crítica contundente ao silêncio que naturaliza o desaparecimento dos mais velhos.

Em um desvio contra a lógica estatal, a beleza está na rebeldia de recusar a invisibilidade, em insistir no direito de existir até o último sopro. Se existe esperança, ela está no simples gesto de lembrar, de querer, e de sonhar.

Um grande momento
A fuga

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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