Crítica | CinemaDestaque

Instinto Materno

A gangorra favorita

(Mothers' Instinct , EUA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: Benoît Delhomme
  • Roteiro: Sarah Conradt
  • Elenco: Anne Hathaway, Jessica Chastain, Josh Charles, Anders Danielsen Lie, Baylen D. Bielitz, Eamon Patrick O'Connell
  • Duração: 90 minutos

Existem dois filmes tentando mostrar sua cara dentro de Instinto Materno, e eles são quase divididos à perfeição em tempo de tela. A forma como eles se comunicam narrativamente não esconde que, esteticamente, essa decisão soe equivocada, caso o espectador esteja procurando coesão no trabalho. São dois caminhos igualmente válidos, que abarcariam a totalidade da obra sem qualquer prejuízo de arranjo, mas a comunicação entre as texturas provoca um desarranjo no material. Como a segunda metade é quando tudo parece perder o propósito, temos a impressão de que algo ali perdeu o sentido, em uma cronologia das emoções. Afastado da obra em mais de uma semana para a análise soar menos figadal, a impressão de que uma obra melhor do que na verdade se apresentou cresce aos olhos.

Esse seria o principal problema da estreia do diretor de fotografia Benoît Delhomme na direção. Fotógrafo de obras relevantes como A Teoria de Tudo e No Portal da Eternidade, existe uma minúcia estética que podemos atribuir facilmente às origens de seu profissional, que captura imagens que revelam um tanto daquele universo claustrofóbico. Talvez dentro de sua estrutura, exista sim um incômodo querendo ser liberto em relação a essa dualidade narrativa, como se uma intenção não coubesse na outra, e ambas permanecessem reféns de suas convicções. Olhando para trás, existe uma vontade de comunicar a respeito da gênese da rivalidade feminina em Instinto Materno, com uma obra escrita e adaptada por duas mulheres diferentes, mas que paga o preço de ser escrutinada por um homem. 

Talvez por essa colocação, o que se abre como uma narrativa plácida e ao mesmo tempo muito denso, acoplada a uma ideia de tradução do horror gradativo pela imagem, acabe que não se cria nesse lugar. Instinto Materno, ainda que traduza de maneira correta o material em que é baseado (e já tinha rendido uma outra produção, em 2018), se descoordena da leitura inicial, e aposta em uma visão muito mais explícita do que vinha sendo apresentado até então. De forma não tão bem sucedida, a segunda parte aqui me remete às intenções também ambicionadas em Obsessão de Neil Jordan, que se beneficiava de um certo tom de humor adicionado no todo. Quando todo o esquema é tão pesado quanto o apresentado aqui, o perigo é essa força opressora se apresentar como uma histeria involuntária, e a comicidade surgir desse desespero. 

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Talvez não exista o espaço para uma espiral tão grande de paranóia e desconfiança de parte a parte, encontrar alento na comédia, ainda que involuntariamente. O resultado é a cara que Instinto Materno acaba adquirindo, um ar de vulgaridade proposital no cinema de gênero dos anos 1990, que a mim, particularmente, toca. No fim da jornada, compreender que Delhomme saiu da análise profunda acerca de paralelismos dentro de uma relação de amizade e cumplicidade, do profundo comprometimento estético e de como suas imagens possuem dignidade e comunicam tanto, para um jogo de gato e rato de engrenagem tosca, essa é a parte mais indigesta de engolir. Como formas de realização tão disparatadas se conectaram é a parte complexa de perceber a aritmética; em separado, tudo funciona quase como um relógio. 

Isso, em parte, se deve ao talento inegável de Anne Hathaway e Jessica Chastain, duas atrizes vencedoras de Oscars por trabalhos menores de suas filmografias (em respectivo, Os Miseráveis e Os Olhos de Tammy Faye), mas que demonstram aqui um grau de complexidade dramática nada simples de alcançar. Ao acessar o romance de Barbara Abel, é fácil compreender que quaisquer atrizes se encantem com o material acessado, e não é simples também colocá-las em perspectiva, até pela gangorra onde ambas joguem seus materiais, e que é a tônica da narrativa. Ninguém está profundamente com razão ou sem aqui, e o espectador é levado por suas atrizes bravas, que se estivessem em material com algum apreço da crítica (injusto que não haja, inclusive), seus nomes seriam cogitados facilmente a prêmios. O jogo entre elas é sofisticado o suficiente a ponto de não sabermos elaborar as qualidades em unitário, muito menos o desenrolar de suas personagens. 

É uma pena que tantos descaminhos psicológicos menos óbvios sejam aceitos de maneira frugal por um lugar de teor narrativo mais facilitado, talvez mais popular. Isso não tira de Instinto Materno o brilho intenso que duas atrizes muito inteligentes conseguem extrair do material, do tanto que elas capturam a intensidade da obra e da forma sensível que elas acessam todo o material. São também elas as responsáveis por criar uma ponte entre os dois momentos da produção, ou seja, também está na conta delas a massa concreta criada em torno da produção. 

Um grande momento

“tire o meu filho da sacada!”

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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