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Nos Seus Sonhos

Sonhando com outra realidade

O mito do Homem de Areia nasce lá atrás, no imaginário germano-escandinavo, como essa figura ambígua que visita o quarto das crianças ao cair da noite, espalha grãos mágicos nos olhos e as conduz enfim ao sono. Uma lenda que tanto assombra quanto acalma, porque ameaça os pequenos que resistem ao horário de dormir e, ao mesmo tempo, explica essa dimensão inexplicável que são os sonhos, esses mundos que aparecem quando o corpo se entrega. Com o passar dos séculos, o personagem ganhou novas formas, nomes e temperamentos. Ene, o Velho; o Bom Homem das Sete Horas; Ole-Luk-Oie; John Blund; Klaas Vaak. Cada cultura ajustou o mito ao seu próprio medo e à sua própria esperança, até que o Sandman moderno se estabeleceu como guia noturno, guardião imaginário de uma passagem entre real e fantástico que continua fascinando.

Nos Seus Sonhos se apoia diretamente nesse imaginário e o transforma em motor dramático. A decisão de duas crianças de buscar o Sandman para “concertar” a vida permite que o filme construa um território onde fantasia, trauma e desejo caminham juntos. A animação entende que o universo onírico é ilimitado, que desloca o espaço antes que a mente alcance, e faz do absurdo uma linguagem possível para a infância. O sonho vira não só cenário, mas metáfora da latência dos medos, da necessidade de controle, da vontade de fingir que a vida pode ser perfeita se a gente apagar o que dói.

É nesse terreno que a relação entre os irmãos se sustenta. Stevie e Elliot atravessam os delírios visuais do filme como duas crianças tentando controlar um mundo que reflete aquilo que ainda não conseguem articular acordados. Eles funcionam porque o filme aposta no afeto e no conflito que existe ali, porque a cumplicidade nasce de pequenas ações, porque a ideia de família perfeita nunca é tratada como fantasia inocente, mas como desejo e desespero. Mesmo quando a narrativa se aproxima de fórmulas, a dupla segura a estrutura. Há carisma, há graça, há um entendimento emocional do que significa crescer diante de uma ruptura.

PresunTony, girafa de pelúcia que ganha vida nesse espaço maleável, adiciona humor e energia. Ele opera como guia, mas também como distorção, como lembrança de que o sonho nunca segue uma linha reta. E Pesadélia, a Rainha dos Pesadelos, com sua presença traz o medo e impede a animação de escorregar para a aventura sem tensão. A dinâmica entre o sonho acolhedor e o pesadelo que força o despertar dá à história peso simbólico que conversa com o mito original.

Entre as escolhas musicais, “Mr. Sandman” de The Chordettes, e “Enter Sandman”, do Metallica, buscam a memória afetiva e vai além do público infantil. A primeira aparece aqui em nova versão, feita especialmente para pequenos, mas quem a conhece sabe que está longe de ser uma canção fofa. Ela nasce do pedido desesperado de alguém que convoca Sandman para escapar da solidão e transformar a própria realidade. Já a segunda música, ainda que “só faça uma pontinha”, traz o humor para a trama e resgata o peso e a escuridão que o mito sempre carregou. Ambas são referências que amplificam a relação entre sonho e ameaça, desejo e inquietação, fantasia e medo.

Com um delicioso momento escheriano, a animação é tecnicamente elaborada, com cenários que se transforma em ritmo rápido, personagens que ocupam bem o espaço e criaturas que nascem de uma lógica visual própria do inconsciente. Há inventividade na paleta, nos movimentos, nas transformações, e isso sustenta a sensação de que estamos dentro de um lugar que respira e se altera conforme a emoção das crianças.

No fim, Nos Seus Sonhos não tenta reinventar o mito, o aproxima de conflitos reais, da imperfeição inevitável e da necessidade de aceitar o que não tem controle. Os sonhos não existem para apagar a realidade, mas para expandi-la, reorganizá-la e talvez torná-la suportável, afinal de contas. A escolha faz o filme funcionar, mesmo quando repete caminhos conhecidos. Nela, o Sandman contemporâneo encontra de novo a sua forma.

Um grande momento
“Arenosos…”

Veja também: Entrevista com o diretor e roteirista Alex Woo

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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