Crítica | Festival

Entrelinhas

(Entrelinhas , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Guto Pasko
  • Roteiro: Guto Pasko, Tiago Lipka, Rafael Monteiro, Sebastian Claro
  • Elenco: Gabriela Freire, Leandro Daniel, Daniel Chagas, Eduardo Borelli, Patrícia Saravy, Renet Lyon, Mauro Zanatta, Ranieri Gonzalez
  • Duração: 90 minutos

Guto Pasko esteve no Cine PE ano passado com Aldeia Natal, saiu daqui com um prêmio de roteiro pelo seu documentário pessoal, e está de volta à competição desta temporada com algo completamente diferente do que trouxe antes. Entrelinhas é um daqueles casos onde não devemos julgar antecipadamente um produto, seja por qual for o motivo. Se uma biografia não me interessa, se um retrospecto histórico não me interessa, e se o título prévio de um diretor não provocam, juntos, um combo aprazível, ainda assim esteja preparado para ser surpreendido. Com um desenho narrativo que se apresenta desde a primeira cena e nos carrega para uma jornada surpreendente de construção cinematográfica, Pasko sai dessa empreitada com outra roupagem. 

Ousado dizer, mas vejo em Entrelinhas uma construção dramática que remete ao A Queda! de Oliver Hirschbiegel. Diante de um olhar sobre a burocracia estatal que constrói o horror, a indução sobre o cotidiano de procedimentos prosaicos que desenha seu espaço filmado é carregar de tintas mecânicas uma realidade de desumanização. Nesse sentido, a tradução quase perfeita de não se perceber como humano e sintonizar a desconstrução de cada individualidade para surgir, impávida, a ordem mecânica. Dentro daqueles espaços, existem seus jogos de poder e interesse, mas acima disso paira uma obrigatoriedade sobre o fazer, ainda que sobre cada ordem, residam ações de tortura e a perda gradual justamente do que é inerente ao ser. 

Pasko apropria-se dessa inteligente costura para traduzir intenções narrativas também na mise-en-scene. Com quadros vivos de acontecimentos, em câmeras estáticas que atravessam cada plano para que a investigação visual do espectador possa dissecar a engrenagem do sistema, Entrelinhas dispõe esse olhar para a prática cênica quase em processo teatral. Estão assentados em cada cenário informações extras de foco para além do que está acontecendo e constituem a cadeia narrativa; seus integrantes por vezes só compõem um painel geral, mas isso enche de motivações gerais em cada plano. Não é um processo que se perceba rapidamente, e mesmo seus pólos de afeto acabam sendo contaminados por essa dinâmica, assim colocando um caráter dogmático ao que é encenado. 

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Ao menos uma escalação de elenco parece estudada ao largo que constitui o talento que o ator agrega ao personagem – mas que também está lá. Eduardo Borelli é um jovem de beleza inegável, e sua presença em cena é daquelas que capturam o olhar da plateia; isso não é algo desprovido de propósito. Seu personagem abre o filme, em tese seria ele um vetor da verdade, a partir do momento de seu emprego cênico; um fotógrafo, alguém que revela o que não se vê. Posicionado como um elemento destoante da máquina estatal, Nonato é, na verdade, um ponto de fuga que distrai o espectador para um lugar de nossa estranheza. A juventude não é necessariamente progressista, nem está livre de culpa diante do Mal, muito menos a beleza precisa ser associada ao que é salvador. 

Com um elenco funcionando no ritmo que tal leitura acerca do mecanismo comporte suas interpretações, há o óbvio destaque para Gabriela Freire, que comporta como a revelação que é uma gama de sentimentos de maneira crescente. Seu corpo apresenta posição passiva a princípio, e sua leitura posterior revela força dramática cada vez mais evidente. Assim como ela, Patrícia Saravy (de A Felicidade das Coisas) só amplia seu arsenal dramático como a mãe da protagonista, Leandro Daniel (premiado por Jesus Kid) revela mais material longe da comédia com que o associam comumente em desempenho notável, e Daniel Chagas transforma-se em um figura que transita entre o desprezível e o inumano com muita propriedade. Todos em cena, no geral, contribuem para essa ideia de Pasko em revelar o que existe por trás da História, aquela cujos relatos não perdem o aspecto genérico mesmo quando tão doloridos. 

É nesse sentido onde mesmo o título de Entrelinhas se mostra um acerto de desenho narrativo. Porque acompanhamos a ditadura não através dos eventos maiores, embora o que se relate aqui seja sim o resultado de um caso verídico. Pasko está interessado no que as irmãs relatam, mas muito também em mostrar o que ocorria longe dos olhos do que se conta, ou seja, o mundo invisível por trás do que constituem os eventos e sua ideia de importância. Vemos cada curva maior com a competência do que seu diretor apresenta enquanto contador de história, mas por trás de uma cena de tortura, existem também as imagens que constroem todo o arcabouço geral aqui – o homem no pau de arara, atrás de sua protagonista é só um exemplo de que as entrelinhas são tão perigosas e violentas quanto o que está no centro de tudo. 

Um grande momento

Beatriz e Elias, frente a frente

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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