Crítica | Streaming e VoD

Pai Nosso?

Horror real transformado em teledramaturgia

(Our Father, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Lucie Jourdan
  • Roteiro: Lucie Jourdan
  • Duração: 97 minutos

Produzido por Jason Blum (ou seja, pela Blumhouse Productions, produtora especializada em filmes de terror, com sucessos como Corra! no currículo), Pai Nosso?, documentário que acaba de estrear na Netflix, poderia parecer uma aposta diferenciada para o que tradicionalmente vemos sair de lá. Isso só se justificaria pelo formato mesmo, porque em essência, seu universo é carregado de uma tensão e um profundo valor por descobertas desconhecidas que o aproxima do cinema de gênero, de alguma forma. Essa é uma tendência que o documentário pode apresentar hoje, enquanto dobradura de conceito. Não basta apenas tornar seu tema acessível e aproximar o público do mesmo, ou dissecá-lo por onde pudéssemos encontrar; novos caminhos são necessários para tornar a experiência mais ampla do que uma vasculhada no Google. 

Pai Nosso? é a estreia na direção de Lucie Jourdan, que já tinha trabalhado em séries de teor parecido para a tv americana. Trata-se de produções de denúncia, que explicitam erros crassos da justiça americana, que muitas vezes se vê atada por circunstâncias que nunca antes foram introduzidas. O caso aqui é um desses, onde uma condenação necessária não encontra razão de ser realizada pelo absoluto absurdo envolvido, nunca antes visto até então. O que é realizado por Jourdan é algo que a própria Netflix vem notabilizando em suas séries longas e filmes, que é um apanhado entre o discurso das vítimas de tal ato e uma estrutura até já meio repetitiva (no caso deles) de reinterpretar de maneira ficcional – ou quase – os acontecimentos narrados pelos personagens ao longo de suas vidas. Trocando em miúdos, um docudrama. 

Pai Nosso
Netflix

O formato até pode ter alguma função didática mais acertada para o público médio se inteirar daqueles eventos. Mas os resultados são inadvertidamente desastrosos, que tentam apenas tirar a força do documentário ao aproximá-lo de uma ficção chinfrim. No balanço final, nem acaba por se tornar um eficiente trabalho documental, muito menos se realiza enquanto ficção. É uma base que, com frequência, irrita o espectador que esperava um material mais cinematográfico de suas histórias, e acabam ganhando um tom de (nos melhores casos) Linha Direta ou (nos piores) Casos de Família – ou seja, o resultado não têm como fugir, geralmente é um imenso desserviço ao que se imagina uma obra cujas intenções cinematográficas nunca se sustentam ou definem. 

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Aqui, a força trágica de um grupo de pessoas que se descobrem meio-irmãos por terem sido gerados pelo sêmen do mesmo médico que inseminou diversas mulheres em Indiana, nos EUA, acaba se esvaindo por também se atrelar a um cardápio pronto e raso do que é feito na seara documental. As “cabeças falantes” de sempre explicam suas situações, em geral muito devastadoras, e o filme na grande parte das vezes nem parece tentar criar uma diferenciação que o defina enquanto obra independente. Em meio ao que estamos acostumados a ver sendo moldado para um espectador padrão, e que é assimilado como qualitativo até pela crítica americana, as tais dramatizações sendo representadas muitas vezes pelos personagens reais, são de profunda tristeza estética, que drenam qualquer possibilidade do filme soar menos encarcerado em uma fôrma velha. 

Pai Nosso
Netflix

Com isso, a tentativa de criar uma ideia de pavor cercando sua narrativa fica restrita exclusivamente ao que têm a dizer a própria premissa. Pai Nosso? relaxa e entende que faz parte da própria natureza do seu material impressionar, e sossega em qualquer tentativa em demonstrar em sua textura algo próximo ao pavor, impressionando mais pela dramaturgia televisiva que tenta imprimir ao seu jogo. Os próprios personagens acabam marcados demais, e mesmo que o filme ainda proporcione viradas no roteiro da vida real, quase beliscando a pedofilia, e acrescentando doses generosas de supremacia branca, o filme decide que não quer mais ir além do que poderia oferecer em matéria de formato, e se acomoda em um triste lugar de cansaço estético. Uma pena que materiais tão ricos de conteúdo acabem na maioria das vezes encontrando trabalhos tão burocráticos. 

Um grande momento
“Antes que sua mãe fosse fecundada, eu já os conhecia”

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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