- Gênero: Drama
- Direção: Marcelo Gomes
- Roteiro: Marcelo Gomes, Armando Praça, Gustavo Campos
- Elenco: Kika Sena, Ridson Reis, Zé Maria, Suzy Lopes, Samya de Lavor, Ana Marinho, Anita de Souza Macedo, Wescla Vasconcellos, Nasha Laila, Patricia Dawson, Buda Lira
- Duração: 104 minutos
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Não falta sensibilidade a Paloma no que concerne a visualização dos corpos de seus atores em cena, principalmente quando está em cena Kika Sena, o corpo da personagem-título. Ele está exposto desde a primeira cena, e na segunda o vemos com seu sexo exposto, mas a naturalidade com que Marcelo Gomes encara essa nudez é a mesma com a qual ele a filma. É tudo uma questão de foco – o que está em questão? Sua exposição ou sua voz? Em cinco minutos, a câmera do diretor nos entrega a resposta, para que possamos captar o que importa naquela narrativa. Trata-se de uma escolha deliberada pela delicadeza essencial de sua protagonista, que permeia não apenas seu universo como os sonhos que acalenta, tão ordinários quanto – para ela – inalcançáveis. Eles disseram.
Nada disso é inédito para Gomes, que já assinou obras de humanidade inquestionável, como Cinema, Aspirinas e Urubus e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo. Pela primeira vez falando explicitamente sobre questões relativas à população LGBTQIA+, o diretor aborda eventos reais para naturalizar corpos que são tradicionalmente violentados pelo país. Essa escolha também busca enfatizar a estridência do terço final de Paloma, quando sua personagem enfim enfrenta a desorientação social e a decorrência de uma homofobia que sempre existiu, à margem de sua própria marginalidade. É quando o filme tenta abrir para o público, até com certo didatismo, uma via crúcis que não está impressa no cotidiano de nenhum de nós como marca indelével, mas que existe de fato, e às vezes irrompe na nossa direção.
Conhecemos as armas do diretor, e elas continuam irresistíveis aqui, construindo planos que imediatamente nos remetem ao campo familiar sonhado por Paloma. Ela está em frente ao quintal, Zé a abraça pelo alto, um close desses dois rostos: o que há de heteronormativo nessa relação, que não está capturado pela lente? Tudo ali é natural e simples, apenas o discurso interno é socialmente explosivo. Paloma quer casar, apesar de já ser “casada”; ela quer realizar tudo o que há no feminino, como mulher que é identificada pelo gênero no qual se identifica. Moradora do interior do interior do Ceará, seu corpo é permitido pelos outros personagens, até que sua existência seja então questionada. Essa luta silenciosa para sair de um lugar de exceção para o de realização é que constitui sua jornada.
A mise-en-scene de Gomes está especialmente abrilhantada aqui, e um dos aspectos que chamam atenção é sua concentração em divergir campo e extracampo. O filme vocifera elementos na imagem, que não estão presentes quando analisamos a alegoria externa, e vice-versa. É uma maneira de outorgar modernidade a um trabalho artesanal como o feito em Paloma, que não se isenta de apresentar complexidade em seus planos, reconfigurando suas intenções imagéticas, propositadamente. É um jogo de esperteza inegável, que recupera ao longa uma textura que igualmente abrange as tintas emocionais do mesmo. A despeito do naturalismo impregnado na narrativa, o filme busca um caminho que o arrebata para o moderno. É a confluência entre o arcaico do pensamento externo, exatamente fora do plano, para o que é visto em seu centro, o desejo por uma vida plena de normalidade.
A construção das relações humanas entre Paloma e seus coadjuvantes também guarda sofisticações. Entre ela e a mãe de seu filho, por exemplo, é formatado um olhar desviante em suas interseções, que vão de uma apresentação arredia até um escancarado respeito mútuo, até o carinho explícito. O que é estabelecido entre a protagonista e o personagem vivido por Zé Maria, o motorista de pau de arara que se apaixona por ela. A princípio, nos é apresentado um possível abusador, que se segue a um homem fascinado por sua figura, e que envereda por um lado desolador dentro da lógica masculina – indo de um extremo a outro, dentro de estereótipos possíveis. A força desses encontros se dá também pelo encontro de atores tão especiais, e do trabalho meticuloso de Maria Clara Escobar e Silvia Lourenço no encontro e na preparação de suas potencialidades.
Chama a atenção esse chamado à heteronormatividade que Paloma escancara, dentro de nós, personas queer por definição. O sonho de Paloma é casar na igreja, como uma mulher cis tradicional sonharia; bem, hoje, casar na igreja nem para a mulher cis é necessariamente um sonho. Encanta, na verdade, o modo como Gomes constrói sua perspectiva de particularidade, de identidade e de idiossincrasia. Não é sobre o sonho LGBTQIA+, por excelência, mas sobre o sonho de Paloma, que é sim dotada de personalidade e autonomia. Uma mulher trabalhadora, uma lavradora que nas horas vagas é cabeleireira, porque não poderia sonhar com o altar? Essa discussão sobre normas para a população gay tem uma tensão discursiva elaborada de maneira muito sóbria, sem sensacionalismo. O tema está em debate, e o filme o observa com atenção, porém sem escolher uma saída, fácil ou não.
É delicioso que Paloma, em sua estrutura, também acabe por aludir a um gênero tradicional do cinema, o romance clássico, adicionado de comédia em muitos casos, não aqui. Venerando encontrar seu lugar entre espaços de conversação mais normatizados, Gomes e seus co-roteiristas Armando Praça e Gustavo Campos, promovem a síntese de, em sua gênese, abrigar encontros e desencontros. É a saga da própria Paloma, a desconstrução de seus sonhos mais arraigados, que se desenvolve ao esbarrar no P.J. Hogan de O Casamento de meu Melhor Amigo – Paloma amiga, você está correndo atrás de Zé, e quem está correndo atrás de você? A resposta está dita da maneira mais agridoce ao redor da produção, que encanta e surpreende a cada novo caminho.
Um grande momento
Paloma, atrasada, corre pela plantação