(Perifericu, BRA, 2019)
- Gênero: Ficção
- Direção: Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda, Vita Pereira
- Roteiro: Nay Mendl, Vita Pereira, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda, Winnie Carolina
- Elenco: Ingrid Martins, Vita Pereira
- Duração: 20 minutos
A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
Sergio Vaz: Manifesto da Antropofagia periférica
Existe uma tensão óbvia entre o centro e a periferia. Quando esta assume a sua narrativa – algo que vem acontecendo cada vez mais (já não era sem tempo) -, surgem pérolas de exposição e ressignificação. Perifericu é uma delas e escancara a diferença imposta em sua criação, ora nas performances, marca da nova produção jovem no audiovisual; ora no discurso, que expõe questões recorrentes em um país desigual e hipócrita.
Peitando essa massa branca, cisgênero, heteronormativa e patriarcal, o curta expõe a diversidade, a profusão artística; fala do preconceito – estético, de gênero, de orientação, de raça – e da estereotipização. A influência do dinheiro e da igreja também não ficam de fora e são cobrados por dificultar ou proibir a aceitação do diferente.
“Faz tempo que eu não sonho… dizem que sonhar também é a certeza de que você está viva e essa é a minha maior preocupação”, essa é a abertura do filme, confirmada pelo encerramento, uma prece em forma de slam: “Se isso aqui é selva; preta, pobre, proletária sabe muito bem o que é ser o capim a cadeia alimentar”. No lugar que mais mata transexuais no mundo e onde apenas finge-se que a escravidão acabou, a mensagem incomoda do começo ao fim e deixa um gosto amargo.
A trama é conduzida por dois caminhos que se cruzam, o de Liz, travesti que mora com a mãe e faz bolinhos para vender em festas no centro da cidade, e Denise, lésbica que acabou de ser demitida e ainda mora com a mãe, a avó, as irmãs, as sobrinhas. Melhores amigas, elas enfrentam individualmente o preconceito, mas encontram na relação um lugar seguro, são como a força uma da outra.
Ainda que tenha alguns problemas de mis-en-scène e no controle das atuações, Perifericu encontra um lugar muito particular, não só pela mensagem, mas pelo modo ousado com que constrói sua narrativa. Entre depoimentos e encenações, traz imagens de arquivo, as manipula, e nunca tenta esconder que é fruto de uma criação plural. Numa amplificação do desenvolvimento de suas protagonistas, a obra está apoiada nas visões diferentes de suas quatro diretoras, porém, ainda assim coerentes.
Neste encontro, acessa temas pesados e, apesar das sacudidas intensas, o faz de forma leve, por vezes divertida, como na dublagem gospel de “General de Guerra”. São recortes de situações costurados com cuidado, alguns deles explícitos e outros nem tanto. Embora falte um ponto aqui e um arremate ali, o que se forma é bonito de ver, justamente por tomar para si a única possibilidade de explorar aquele espaço, acessar questões graves e pesadas.
Um outro modo de se ver, mas, muito mais do que isso, de se mostrar e reafirmar sua existência no Brasil neopentecostal e cloroquinado de Bolsonaro, Perifericu é um contraponto à invisibilização sistêmica e ao menosprezo, faz parte de um movimento que se fortalece a cada ano, com novas formas de expressão, em busca da ocupação e contra a mediocridade.
Personagens marcantes, momentos inspirados e histórias reais transformadas definem uma obra que valoriza a coletividade e escolhe suas armas para mostrar que a periferia, com sua cor, sua luta e sua diversidade, está aqui para ficar.
Um grande momento
“Conhecerás a Jeová”