Crítica | Cinema

Pobres Criaturas

O entronamento da Deusa

(Poor Things, EUA, RUN, IRL, 2023)
Nota  
  • Gênero: Comédia, Drama
  • Direção: Yorgos Lanthimos
  • Roteiro: Tony McNamara
  • Elenco: Emma Stone, Willem Dafoe, Mark Ruffalo, Ramy Youssef, Christopher Abbott, Hanna Schygulla, Jerrod Carmichael, Margaret Qualley, Kathryn Hunter
  • Duração: 140 minutos

Usando como base o livro de Alasdair Gray, Yorgos Lanthimos há muito tempo não era tão Yorgos Lanthimos quanto em Pobres Criaturas – para o bem e para o mal. A essa altura já completamente entronizado na máquina hollywoodiana (ou, em uma versão dessa máquina que ele criou praticamente para si, e que foi devidamente aprovada por seus fundadores, digamos), seu novo filme não soa confortável dentro do que a estrutura estaria disposta a comportar do artista. Pelo contrário, Lanthimos está gradualmente cedendo uma visão a um lugar tão quadrado e tão pouco abstrato, craquelando por dentro um molde antiquado. Criou sua trupe particular e está reenergizando o ‘status quo’ da indústria; até agora, nada sequer parecido com um pupilo/seguidor surgiu, e o criador segue fornecendo material para fãs e detratores, novos ou antigos. 

As acusações de misantropia, que foram amortizadas em A Favorita, aqui voltarão com força redobrada, porque o autor está mesmo querendo dinamitar o que ele entende como um mundo que não compreende sua mensagem (atitude?). À força de uma protagonista que exala feminismo por onde quer que passe, o patriarcado – que, infelizmente, é a base do mundo – paga o preço de ser dominante, ou seja, recebe a maior quantidade de pedradas possível. Pobres Criaturas, na certeza de que o ataque é necessário, concentra suas armas no que é a classe que manda na pirâmide em todas as áreas; nesse lugar, será também na cinefilia jovem e na crítica de igual faixa que encontrará maiores detratores, porque, afinal, são majoritariamente homens, aqui como em qualquer outro setor. 

Trata-se também de um produto para iniciados; já tendo conhecimento do artista que se é, Pobres Criaturas terá seus códigos e material imagético mais rapidamente reconhecido, e suas intenções claramente definidas. Esse é um lugar onde o Homem tem papel além do subalterno, e sim exatamente servidor do que há de mais sofisticado em matéria de chacota e subserviência, estética e narrativa. Um exemplo do que estou falando é que o principal modelo de testosterona e volúpia masculina é ‘o Hulk usando uma cinta de compressão abdominal’, leia-se um Mark Ruffalo que precisa esconder suas formas pouco atléticas. Isso é o ápice de uma leitura bem pouco lisonjeira de uma visão contemporânea do macho alfa, e de leitura apenas visual, porque a leitura narrativa é ainda mais corrosiva. 

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Do repertório conhecido de Lanthimos, Pobres Criaturas é um filme que nem precisaria ser assinado para que fosse reconhecido. A separação por capítulos está lá, a câmera olho de peixe deformando as bordas e demandando a estranheza necessário a algo que já é majoritariamente bizarro; começo a me perguntar se em algum momento esses elementos estarão diferenciados do que é sua assinatura, e se essa assinatura serve mais à narrativa que conta do que ao currículo do criador. Sua parceria com Robbie Ryan continua rendendo prodígios de imagens, como as surrealistas visões de Lisboa, ou mesmo a criação de um universo de sonho em meio ao horror de aprisionamento do feminino. Essa prisão está nas imagens que tentam capturar Bella Baxter e suas outras parceiras de cena, em movimento que já acontecia no longa anterior do diretor, um lugar que era muito mais território ocupado; aqui, temos a nítida sensação de que sua protagonista é uma figura referencial de quebra. 

Lanthimos desde Dente Canino tenta brincar de Criador em suas produções, e aqui ele apresenta mais um alterego, com nome e sobrenome: God – Deus. Godwin – Deus Vence. O personagem de Willem Dafoe, uma espécie de Dr. Frankenstein ainda mais grotesco e não apenas com o que faz, é um modelo de reflexo para o cineasta, que também se imagina capaz de tentar aprisionar suas temáticas em um quadro de liberdade; sim, aprisionar a liberdade. Como tentar moldar algo que já é reconhecidamente livre? Um ponto que pode ser reconhecido como ranhura de Pobres Criaturas é essa vocação para o desconforto não estar desatrelada de um didatismo excessivo; o discurso do filme não apenas é multi verbalizado, como se repete dentro de sua estrutura. Uma apostila para iniciados, onde o recorte feminista nada tem de muito revelador, e que se repete em si, com poucas saídas para a reflexão particular; tudo está à diposição fácil do espectador. 

Quem nos dobra na direção de um encerramento menos reconhecível é a coragem com a qual Emma Stone mergulha na turbulência proposta pelo seu mentor. Já de passagem anterior pelo “Lanthimosverso”, igualmente promissora, mas que aqui escala algumas montanhas de coragem. Não houve nada parecido em sua filmografia antecipadamente a Pobres Criaturas, porque seu ‘star power’ é colocado à disposição de um modo de ousadia com a qual o cinema estadunidense não está acostumado. O corpo liberto de Bella Baxter é um convite à provocação estética, ao absurdismo de um Criador que está indo até às últimas consequências para que sua assinatura seja engolida em brasa. Até aqui, sua mensagem é absorvida com o impacto necessário; que as arestas sejam aparadas no futuro por um discurso que confie ainda mais na capacidade de seu diálogo. 

Um grande momento

“eu vou socar aquele bebê”

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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