Crítica | Streaming e VoD

Mixed by Erry

A origem de uma certa pirataria

(Mixed by Erry, ITA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Sydney Sibilia
  • Roteiro: Sydney Sibilia, Simona Frasca, Armando Festa
  • Elenco: Luigi D'Oriano, Giuseppe Arena, Emanuele Palumbo, Francesco Di Leva, Adriano Pantaleo, Cristiana Dell'Anna, Fabrizio Gifuni
  • Duração: 110 minutos

É interessante como as coisas acontecem de maneira paralelizada na arte. A Netflix lança um filme como Mixed by Erry exatamente no dia que a cinefilia acorda desolada porque foi anunciada a desativação de um dos agregadores de “acesso a filmes de maneira clandestina” mais populares no país. Dito isso com absoluta liberdade de expressão até porque nunca consegui ser muito eficaz na prática, mas ouvi o choro de tantos amigos, me solidarizei com eles pela perda de acesso a clássicos que o tal espaço dispunha, que dizem ser – e eu acredito que seja – dos maiores e melhores ao alcance. O que isso tem a ver com a estreia italiana? Tudo, levando em consideração que trata-se dos eventos reais que formaram o que talvez tenha sido o difusor da “pirataria” na indústria fonográfica local. 

O tal “selo” Mixed by Erry acabou, em determinado momento do fim dos anos 80, o maior vendedor de cassetes do país, estimando-se um total de mais de 185 milhões de cópias em aproximadamente 5 anos. Na origem, tratava-se do sonho de um jovem pobre, Enrico, em se tornar DJ, e depois de levar alguns muitos ‘nãos’ em suas tentativas de tocar (e ouvir coisas verdadeiramente cruéis a respeito de sua aparência), teve a ideia de comercializar o que ele fazia de graça. Desempregado, porque não vender as fitas cassete que gravava para os irmãos e vizinhos? Assim nascia o título do filme, Mixed by Erry, que se tornaria um misto de loja física, central de contrabando e ponto de encontro entre artistas marginais e um público sedento por algo que ainda não existia: a auto-escolha. 

Das cassetes para os cds, da música para o cinema… em pouco mais de 10 anos (e o surgimento do DVD), o que era proibido ganhou as ruas do mundo todo; sem impostos e enriquecendo pessoas muito longe de quem sentava no banquinho de uma barraca, também a pirataria hoje parece coisa do passado – embora ainda exista, e muito. Há os que acreditam que nada pode ser mais democrático do que a doação da arte, fonográfica ou audiovisual, e ao menos naquele Mesmo se Nada Der Certo temos essa ideia de liberdade levada às últimas consequências. Aqui, tudo é muito bem definido entre mocinhos e vilões; o problema é que, dependendo do público a que assistir Mixed by Erry, esse lugar não é difícil de ser trocado. 

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A produção parece escolher um lado também. Os irmãos Frattasio são mostrados como jovens sedentos por vida, luminosos, efervescentes, descobrindo o amor, mergulhados na extravagância oitentista, cada um de personalidade diferente e complementares; seu algoz, o chefe da polícia federal que os caça, é cafona, raivoso, escurecido pela imagem, triste. Independente do que é o julgamento de cada espectador, Mixed by Erry já fez o dele, e coloca isso com clareza no plano. A representação de cada personalidade, positiva ou negativa, mostra que o filme eleva o caráter do que fizeram seus protagonistas, e os incentiva do início ao literal fim – e não percam porque tem cenas pós-créditos, com uma questão que é pontuada na narrativa inteira. 

Enquanto material biográfico, que é o gênero onde está inserido, Mixed by Erry não tem nada de muito elaborado além de contar de maneira eficiente aquela história. O que configura sua qualidade é o carisma generalizado que está presente em cada entrada em cena, de personagens grandes aos pequenos, todos olhados com muito interesse pela direção. Se essa é sua qualidade, também se configura um defeito: o filme não consegue dar conta de colocar todas as questões na tela, e tem personagem abandonado, tem tipo que sai de cena sem se despedir, e tem questões que parecem mais resumidas do que deveriam ser. Tudo isso é significativo do que a direção de Sydney Sibilia (de A Incrível História da Ilha das Rosas) alcança, um filme repleto de uma nostalgia contagiante, e de um frescor sem igual por um tempo apagado pelos streamings de filmes e músicas. 

Essa discussão que Mixed by Erry levanta enquanto obra (e que já corre em qualquer debate cinéfilo há anos e anos), é o que está nas entrelinhas do filme, e que poderia também estar na espinha dorsal do projeto. Se a arte não merece ter freios ou amarras, como realizar novas obras mediante sua difusão gratuita? Não há uma resposta fácil, muito menos uma ideia única de possibilidade, mas o filme de Sibilia mostra uma visão muito solar do que é a necessidade do público em consumir o que não está à nossa disposição. E esse debate merece o centro das atenções, porque provavelmente ele está só começando.

Um grande momento

A festa

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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