Crítica | Cinema

Sem Ursos

Criatividade sem fim

( خرس نیست, IRÃ, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Jafar Panahi
  • Roteiro: Jafar Panahi
  • Elenco: Jafar Panahi, Reza Heydari, Bakhtiar Panjei, Mina Khosravani, Vahid Mobaseri, Naser Hashemi, Narjes Delaram, Amir Davar, Javad Siyahi, Darya Alei
  • Duração: 105 minutos

O cinema de Jafar Panahi completa uma década de impossibilidades transformadas em oportunidades. Em 2010, o cineasta iraniano foi condenado a prisão domiciliar e uma pena de 20 anos sem filmar por apoiar o candidato de oposição ao atual governo. Posteriormente, foi acusado de filmar sem autorização e nisso já vão cinco longas metragens filmados de maneira improvisada muitas vezes, e rebelde em todas. O mais recente, esse Sem Ursos, acaba de receber o prêmio do júri do Festival de Veneza, e mostra que o cineasta, a despeito do horror pelo qual passa, continua criativo e perspicaz, na hora de traduzir o mundo à sua volta e os desmandos sociais que assolam o seu país. Dessa vez, Panahi utiliza a própria história para inspirar o que filma, em mais um ato de metalinguagem cheio de propósitos. 

Mais uma vez interpretando uma versão de si mesmo, ele está aqui em busca de descanso no interior do país, rodando um filme à distância. Quando acontecem intempéries mundanas durante esse processo, Panahi se vê em meio a dois casos de absoluta ausência de comunicação. Essa dificuldade, muito própria do melhor cinema iraniano (ou seja, aquele que não é histérico como Além das Paredes), motiva os casos a saírem de uma zona civil comum a adentrar a existência do próprio diretor, que tergiversa sobre sua situação através de seu roteiro e personagens. São duas histórias de amor interrompidas pela truculência, das leis e das tradições, ambas precisando com urgência de reformas; na verdade, a real atualização deveria partir mais dos seres que das instituições. 

Sem Ursos, assim como sua filmografia inteira e mais especificamente os quatro anteriores de seus feitos, é um tratado sobre a liberdade de expressão e os desdobramentos de ações oriundas dela. Aqui, Panahi não fala diretamente sobre si como em Isto Não é um Filme, mas coloca as reverberações de seu caso nos outros dois que estão sendo tratados, e de maneira surpreendente, é cruel com sua criação. Na verdade, esse seu filme talvez seja o mais duro de uma carreira recheada de afeto, mesmo quando nada em sua vida pessoal poderia refletir tais sentimentos. Ainda existe muita compreensão a respeito de pelo que se luta, pelo que se anseia em sua narrativa, mas existe enfim uma maneira amarga de reagir a tantos desmandos por tantos anos. 

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Não é o caso de observar Sem Ursos como uma mudança de personalidade por parte de seu realizador. Panahi continua com muita delicadeza sendo ferino e até sarcástico, mas sua pena dessa vez refletem nuvens ainda mais carregadas que anteriormente. Talvez o clima político desacertado do mundo inteiro tenha inspirado o cineasta de O Balão Branco a criar uma carapaça melancólica para vestir, ainda que especificamente dessa vez. Uma carreira brilhante, repleta de filmes já clássicos, não é alterada de maneira tão rápida, e sua capacidade de ainda conseguir originalidade dentro de condições tão adversas é nunca menos que espantosa. Essa produção nova demonstra uma tentativa de Panahi em encontrar um tom ainda não utilizado, sem perder suas origens. 

Com a narrativa em dia, Panahi também não deixa a desejar quando a sua direção é colocada à prova. Sem Ursos já abre com um plano simples, porém muito eficiente, quando cerca uma filmagem banal de uma camada de metalinguagem, saindo de uma cena de ficção interna e entrando em uma versão do real, em estética indo de uma câmera para um notebook. Aos poucos, o filme vai avançando por muitas ideias renovadas desse diretor surpreendente, como em suas cenas noturnas que avançam por colinas ameaçadoras, com a escuridão sendo filmada com uma tensão que raras vezes Panahi ousou acessar. Não é necessariamente uma rendição ao cinema de gênero, mas fica claro que esse cineasta também consegue criar suspense se quiser, e com insuspeita qualidade. 

O que talvez deixe a desejar em Sem Ursos é, se valendo de não uma, mas duas tramas românticas, que o filme se encarrega de não demonstrar muito interesse em conectar o espectador a esses personagens, mais proximamente. Não nos envolvemos com as histórias, porque o roteiro tem outros interesses, com certeza mais elegantes, mas que trava a nossa compreensão com uma ideia de cinema popular que Panahi consegue acessar facilmente. Parece simplesmente ter decidido não atender a isso, de maneira deliberada. É a única curva que impede um voo ainda mais extravagante a essa nova obra de um homem que não cansa de nos impressionar com sua capacidade de reinvenção. 

Um grande momento
Mais um pedido pra Jafar, e mais um, e mais um…

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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