Crítica | Cinema

Meu Amigo Robô

Somos todos cachorros e robôs

(Robot Dreams , ESP, FRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Animação
  • Direção: Pablo Berger
  • Roteiro: Pablo Berger
  • Duração: 100 minutos

Pablo Berger é um dos cineastas espanhóis mais interessantes a surgir nos últimos 20 anos, e infelizmente ele tem apenas quatro longas na carreira. Suas produções, de alguma maneira, sempre abraçam a cinefilia e a fantasia de uma maneira desconcertante, seja em uma comédia popular ou na adaptação de um clássico de maneira barroca (Branca de Neve). O lançamento de Meu Amigo Robô eleva ainda mais o que já estava no alto, e nessa sua primeira incursão na animação, Berger praticamente não mudou nada em suas características, e no caso de um cineasta com tão pouco volume na carreira, essa ideia é ainda mais salutar. Exemplos de contemporâneos seus que embarcaram na animação, Wes Anderson e Tim Burton tem entre suas grandes obras projetos animados.

Retirando todas as arestas fabulares, e que são permitidas principalmente a um longa de animação, Meu Amigo Robô emerge como uma história de contornos queer das mais contundentes. Na verdade, talvez seja o projeto de animação mais contextualmente gay que particularmente eu tenha visto, e entre os que são, o filme acaba se juntando mais às qualidades de Flee que às tentativas de Luca. Berger não tenta colocar em cena alguma situação explícita do naturalismo, afinal estamos falando sobre uma história da amizade entre um cachorro e um robô, em uma sociedade onde os humanos foram substituídos por animais. Se sozinho essa ideia já provoca alguma reflexão, e em como se substitui cada humano por cada animal em posições estratégicas, o filme surge com ainda mais força dramática em seus detalhes. 

Os tais sonhos do título são, por exemplo, mais do que projeções de desejos dos protagonistas, mas literalmente eventos noturnos onde eles vão se conectando a uma realidade que gostariam de viver, com toques que vão se revelando em camadas proporcionais. De um sonho banal, em uma colocação simples, passando por uma ideia surrealista cheia de descaminhos, até chegar a um pesadelo assustador e um delírio musical, Robot Dreams leva a sua ideia bem longe, ampliando o que nem imaginávamos que seria feito. É literalmente um mergulho em sua proposta, com delimitações muito bem definidas, que vão revelando o interior de seus personagens, mas também de seu cineasta. 

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São também nesses momentos que o filme revela a porção cinéfila que Berger pinça em toda sua obra, demarcando a projeção com suas referências de vida. Do momento Halloween do filme, onde momentos de O Iluminado e A Hora do Pesadelo surgem de maneira arrebatadora, até a cena do chuveiro de Psicose sutilmente apresentada, Robot Dreams não deixa esses momentos entupirem a narrativa. Assim como o ostensivo material de marketing que a produção debocha, com momentos onde marcas invadem o plano, Berger tem em sua cabeça um grande número de propósitos a serem apresentados em cena, e não se encerram no roteiro ou na realização, mas na ideia de entregar um produto que se sobressai a suas técnicas. 

É nesse sentido que, embora todos esses elementos compunham um quadro amplo de detalhamento, a espinha dorsal emocional do filme sobressai no que vemos. A relação entre o cachorro e o robô sem nomes, mas donos de personalidades absolutamente complementares, é um ponto alto no cinema nesse ano, não porque reflete alguma beleza recôndita que o cinema esqueceu de tratar anteriormente. O que acontece é que Meu Amigo Robô mimetiza em dois não-seres humanos tudo o que há de mais intrinsecamente humano que pode surgir entre duas criaturas. Nada está fora do que é visto: a paixão inicial, o encantamento pelo aprendizado coletivo que empreendemos ao encontrar o novo, o ápice de uma relação em uma cena apoteótica no Central Park, e o impedimento do futuro quando algo se torna profundo demais. 

O que acompanhamos após a primeira parte de Meu Amigo Robô é um compêndio de todas as relações perdidas que já vivemos, que vão desde a dor da perda e a tentativa de retomar tais sentimentos avassaladores até a consciência do tempo, e do que se perdeu. A máxima pode e se torna cada vez mais dolorida conforme Berger avança no escrutínio e deixa claro que se refere ao chamado “ponto do não retorno”, quando apenas observamos o quadro instaurado sem ter como voltar atrás. É como a vida real: o afã do espetáculo de nossa felicidade é sempre o prenúncio do fim de algo, que criamos enfaticamente ou que nunca existiu. A ideia de olhar para trás e perceber a mais dura das realidades: nenhuma dor é eterna, ninguém é insubstituível. Ficam as imagens, as lembranças, o arrebatamento completo, escondido numa curva longínqua do coração, à espera do próximo furacão. 

Um grande momento
“September” – mas tem muitas opções…

[47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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