- Gênero: Documentário
- Direção: Juru, Vitã
- Roteiro: Juru, Vitã
- Duração: 90 minutos
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A cultura ballroom passa por um novo momento de expansão, e podemos dizer que Salão de Baile: This Is Ballroom, no Brasil, é mais uma peça de um quebra-cabeça que é montado há quase 60 anos. A partir da cisão dos concursos de beleza para drag queens em 1968, período onde as artistas negras perceberam que não tinham vez na cena estadunidense e resolveram criar seu próprio acolhimento, o movimento praticamente não para de se prolongar, criando novas ramificações de maneira ora mais gradativa, ora mais veloz, como nas últimas três décadas. De lá pra cá, o termo “travesti” tornou-se pejorativo, e RuPaul Charles explodiu como cantora e entertainer – e por causa de sua fama crescente, algo como RuPaul’s Drag Race não só foi possível, como popularizado. Além disso, um filme antes tratado como underground, hoje se mostra uma referência inicial aqui – Paris is Burning. Talvez seja esse o momento onde a cena passa a ser assimilada no país, para além de guetos específicos.
O que o trabalho de Juru e Vitã faz extrapola a expressão didatismo, porque não estamos em um universo já 100% assimilado. Para muitos, as batalhas de salão protagonizadas por artistas periféricos são ainda um campo inédito, com o qual não se tem qualquer aproximação. Quando uma obra como Salão de Baile nasce, os méritos são tão amplos que é difícil mensurar o tamanho das possibilidades que podem ser abertas a partir do conhecimento, justamente ele a principal arma contra o preconceito, de qualquer ordem. Da ordem social, portanto, ultrapassa muitas necessidades sequer a estreia de algo tão urgente quanto uma obra que dissemina afeto entre pessoas que foram historicamente destituídas de poder, e que tem naquelas noites esfuziantes uma recuperação de auto estima, e sentido de cura para suas feridas emocionais, por mais suaves que sejam os resultados.
Enquanto cinema, Salão de Baile se enquadra em zona documental com a força de discursos abrasivos de cada personagem em tela. É o coletivo de situações, ancoradas por situações individuais poderosas, que conectam cada botão apertado pela produção. Seu estado de guerrilha não é apresentado em raias comuns, mas está lá no corpo de cada tipo que ocupe a tela. São vozes absolutamente políticas que rasgam a narrativa e tiram do lugar comum um filme que nem se quisesse seria brando em sua abordagem, porque seus personagens precisam de todo e qualquer espaço para se fazer notar em suas potencialidades. Suas autoras então têm a sábia decisão de entender que o poder de suas imagens está em capturar todos os momentos relevantes possíveis, e deixar o ecrã incendiar a cada novo discurso, passo, rosto ou atitude.
Aos poucos, o que parecia menos compreensível, começa a se iluminar, entre o público que desconhecia a existência das casas, dos quesitos do ballroom e da irmandade que une aquelas personagens. O que vem à tona, desde sempre, é o quanto tais existências desgarradas de qualquer oportunidade ou afeto explícito encontraram uma razão de existir através de uma cultura que existe previamente à essa juventude vigente. E o que passa explodir oriundo da tela é a energia contagiante de cada troca em cena, de cada disputa e de cada avanço conseguido às custas de muita técnica e treino. Com isso, Salão de Baile remonta uma ideia de auto-estima ou que estava perdida, ou que jamais havia existido, e o espectador é alimentado por essa expressão de ebulição emocional, através do físico.
A montagem de Peterkino é aliada do caldeirão de ideias que liberta-se das mentes de suas diretoras. Ao mesmo tempo em que une de maneira professoral os muitos dados de um caleidoscópio de eventos, também experimenta um ritmo alucinado de mecanismos do corte. É como se não pudéssemos seguir desmotivados diante da mais absoluta desconstrução do plano, pois sua ordem é desnortear a noção de sentido. Dessa maneira, temos em Salão de Baile espaço para o suave literal e para o elétrico, mostrando um caminho menos óbvio dentro de um documentário que provoca na inserção de seus códigos aparentemente tradicionais. O que é extraído da imagem é uma reprodução do vigor dos sujeitos filmados, mostrando que também o filme foi contaminado por uma avalanche sensorial.
Independente de que o baile filmado não seja orgânico, as imagens que as autoras conseguem em sua proposição, traduzem muito do que é a real atmosfera de um baile, com toda a sua extravagância e as possíveis rivalidades traduzidas em um momento específico. Nessa cena, adentramos o conflito que o filme não consegue apagar por trás da encenação, e transforma o artifício em uma possibilidade concreta. Além dela, que não se mostra tão frontalmente quanto deveria, outra sequência forma um painel crucial para mostrar a intimidade daqueles afetos. Com isso, é feito o mapeamento do que talvez Juru e Vitã pretendem ao abordar esse espaço de encontros e de recriação de identidade. Através do olhar para uma família de sangue e da fervura máxima de um de seus integrantes, Salão de Baile monta esse mosaico complexo e verdadeiro por trás de sua historicidade.
Um grande momento
Desabafo feroz