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Santiago

(Santiago, BRA, 2007)

Pouco antes de virar o editor-chefe da revista piauí, João Moreira Salles decidiu que a sua despedida das telonas seria feita através de um documentário que ficou treze anos em suas prateleiras com a história do mordomo da casa de sua família na Gávea e que nunca chegou a ser montado.

O fascinante mordomo, Santiago Badariotti Merlo, com toda a sua sensibilidade e cultura inunda a tela e chama a atenção do espectador, mas apesar de falar sobre a sua origem italiana, suas pilhas de papéis sobre mais de 4.000 anos da aristocracia e seus arranjos de flores, não conta só sua história. Na verdade, desnuda aquele que não aparece no quadro, que só por algumas vezes deixa a voz vazar de fora da cena e que tinha visto o tempo passar mas queria, de qualquer maneira, voltar ao seu passado na casa da Gávea.

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Na verdade, João era novo demais para perceber isso e a edição do filme foi impossível. Mas depois dos quarenta anos ele resolveu reabrir as latas com o material bruto e pediu a ajuda dos montadores Eduardo Escorel e Lívia Serpa para analisar o material. Juntos, depois de algum tempo trabalhando o material, eles descobriram o que ali realmente era história. Santiago ganhou corpo, ou corpos, e conseguiu ter vários filmes e histórias dentro de si.

Logo no começo, entramos em um mundo que transgride as regras documentais defendidas nos últimos tempos. A câmera se aproxima lentamente de alguns pequenos quadros, há uma trilha sonora e, de repente, uma voz off começa a narrar em primeira pessoa o que vemos e diz que aquele seria o começo do filme ideal quando ele foi rodado.

Assim, sem muito alarde, cenas como esta e outras, como a da oração em latim, desconstróem o mundo de todos os documentários. Até onde uma cena pode ser manipulada para gerar sentimentos naqueles que assistem ao filme? Que falas devem entrar e quais devem ser ignoradas? O filme conta a história do documentado ou a que o documentarista quer ouvir? A narração, feita por Fernando, irmão de João, é mais um exemplo de como é possível manipular aquilo que se vê, ou ouve.

Mas não é só isso. Em Santiago, tanto o documentado como o documentarista têm uma relação de anos, de uma vida toda. Quando “Joãozinho”, como diz o mordomo, nasceu, Santiago já estava na imponente casa da família Moreira Salles, onde trabalhou por mais de 30 anos, e era uma das referências às memórias de infância do diretor. Em muitas cenas, o que vemos é uma tentativa desesperada de resgatar este passado, ainda que para isso João usasse um poder que sempre teve. Ou com suas interrupções e ordens, ou com a estética distante de cada quadro. “Ele nunca deixou de ser o empregado e eu nunca deixei de ser o filho do patrão”.

Entre manipulações e opressões, vemos na tela as histórias de João e sua família, na gloriosa mansão, entre bailes, reuniões de negócios e músicas de Beethoven tocadas de fraque ao piano no meio da noite. Um trecho em super8, o único silencioso do filme, onde a família toda brinca na piscina, fala sobre tudo o que aquele lugar representou.

Há também a história de Santiago. Um homem culto, viajado e dedicado ao trabalho. Poliglota, falava seis línguas e, nas horas vagas, transcrevia, sem traduzir, a história dos ricos e poderosos das dinastias e aristocracias, indo da China à Hollywood, de Lucrécia Borja à Cyd Charisse e resultando em uma grande quantidade de histórias recontadas, todas organizadas, datadas e separadas com fitas francesas importadas especialmente para isso. Para Santiago, todas estas pessoas não seriam esquecidas e estariam vivas enquanto se falasse sobre elas.

Tecnicamente, o filme tem na montagem sua força maior. As colagens, como a da piscina, aumentam a força de tudo o que está sendo dito. O uso de outros filmes remete a outras verdades, como a resposta final de Viagem a Tóquio, de Yazujiro Ozu (de quem Salles emprestou os enquadramentos estáticos em preto-e-branco, fotografados pelo sempre competente Walter Carvalho) ou a gratuidade da cena de dança em A Roda da Fortuna, filme favorito do mordomo Santiago.

Depois de ter chamado a atenção por onde passou, dos vários prêmios recebidos e de ser considerado um dos documentários mais influentes dos últimos tempos, o filme é lançado em dvd. A edição especial traz o filme comentado, trechos adicionais e as poesias “Poesia É Uma ou Duas Linhas” e “Por Trás de uma Imensa Paisagem e Duas Linhas”. Traz também a versão escrita do filme e nela o comentário do teórico Jean-Claude Bernadet.

Um filme marcante e que faz pensar, mesmo depois que acaba. Daqueles que ficam na cabeça de quem o assistiu por muito tempo.

Realmente imperdível.

Um Grande Momento

O final.

Prêmios e indicações (as categorias premiadas estão em negrito)

Grande Prêmio Brasil de Cinema
: Documentário, Direção, Fotografia (Walter Carvalho), Montagem de Documentário (Eduardo Escorel, Lívia Serpa), Som (Jorge Saldanha, Aloisio Compasso, Denilson Campos)
Miami Film Festival: Documentário
Festival de Alba: Prêmio do Júri Popular

Links

Submarino

Documentário
Direção: João Moreira Salles
Roteiro: João Moreira Salles
Duração: 80 min.
Minha nota: 9/10

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
2 Comentários
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Wally
Wally
04/06/2009 11:23

Já havia lido muitos elogios ao filme. Mas só agora, lendo seu texto, que me animei mesmo em vê-lo.

Ciao!

Wallace Andrioli Guedes
Wallace Andrioli Guedes
04/06/2009 03:36

Oi Cecília.
Estou muito afim de ver SANTIAGO, até porque a única experiência que tive com o cinema do Moreira Salles foi o maravilhoso ENTREATOS. Mas, infelizmente, não chegou até agora em dvd na minha cidade. Estou no aguardo.

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